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Longitudinal

Havia, há um dia

Setembro 24, 2024

Havia, há um dia, quem chinelasse pela carruagem do comboio, os pequeníssimos grãos de areia em debandada perna abaixo até ao piso azul salpicado de estrelas brancas de microplástico, como aquele outro lençol em constante emoção que vem ao nosso encontro junto ao areal, há bem pouco tempo havia quem transportasse até à barriga da perna o que sobrava de uma jornada plena de ócio, atirada à cara de quem passou pelas férias sem pisar um areal, nem sequer um peixe-aranha mais atrevido, e nem sentiu falta desse mergulho a seco no Verão, nem do mergulho a sério na àgua com sal e plásticos, macro ou micro, ainda há um mês havia pouco espaço na carruagem para entrar, era preciso furar pelo meio dos corpos adolescentes, colados entre si como se o sal os prendesse uns aos outros após um dia inteiro na praia, talvez apenas uma tarde, já que nesta idade basta uma tarde para gastar quase uma vida inteira, até há uma hora, parece-me agora, ainda os via adormecidos nos bancos do comboio, amontoados como despojos de uma batalha, mas das felizes, com os seus penteados todos iguais, as suas roupas idênticas, a dormir com um escaldão bem vivido, ou ainda a pingar, de pé, uma poça a crescer no meio da carruagem, a praia possível de Belém ao Cais Sodré, o Verão praticável, havia qualquer coisa de Outono nesse Verão, talvez a culpa seja do ar condicionado.

 

 
 

Quinze anos

Setembro 09, 2024

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Deste lado do túnel tento espreitar, mas não vejo nada. Estaria naquele canto do sofá, onde me sentava de computador ao colo para escrever? Ou no trabalho, à frente da secretária, a antecipar a hora de almoço? Era uma quarta-feira e por volta das 12h publiquei pela primeira vez neste blogue. Aconteceu há quinze anos, num dia 9 de setembro, mas em 2009.

"Só se têm passado coisas que me comovem", começava essa publicação curta. "Mesmo que isso só aconteça uns minutos, umas horas ou uns dias depois." Não consigo afirmar com convicção porque o fiz nessa altura, assim como continuo sem perceber porque continuo a fazê-lo década e meia depois. Sei que é um sítio, ainda que abstracto, onde estendo ideias ao comprido, e que atravessou fases e vidas distintas. Da profusão de publicações dos primeiros anos, muitas delas tornadas penosas de ler com o tempo, este blogue tornou-se um repositório mais irregular. Talvez tenha começado a pensar menos, talvez tenha passado a pensar de mais.

Passaram quinze anos. Volto a comover-me.

 

As Primeiras Vezes

Junho 01, 2024

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A maior parte do que escrevo acaba nestas quatro paredes com janelas rasgadas para a minha cabeça. Mas nem tudo vem aqui parar. 

Há quatro anos a Joana Botelho enviou-me um e-mail, que ainda guardo, com o assunto "ConeyIsland - Invitation to edit". A partir daí vasculhei, sem remexer, as memórias da Joana para escrever algo que estivesse à altura dessa confiança. Assim começou a nascer uma curta-metragem. 

Há um ano decidimos pedalar do Cais Sodré até à Torre de Belém e a Joana só parou, ainda sem ar, no palco dos Novos Talentos FNAC. Venceu o primeiro prémio. Aí o filme já tinha corpo e nome, "Coney Island - As Primeiras Vezes". 

Há uma semana, enquanto a Joana caminhava até ao palco (de uma sala que conhecemos de outros festivais) para receber o prémio Sophia de Melhor Curta-metragem de Documentário, aplaudi, sorri e pensei na quantidade absurda de memórias que cabem num filme de oito minutos. 

Daqui a alguns dias, a partir de 6 de junho, o filme vai estar em exibição no Cinema City Alvalade, em Lisboa. 

 

Perfeitos, os dias.

Abril 16, 2024

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(Still do filme Dias Perfeitos, de Wim Wenders)

 

Acordar com o sussurro de uma vassoura, erguer o tronco, depois o resto do corpo, arrumar com preceito a roupa de cama e o colchão, pulverizar de água as plantas, lavar a cara, vestir a roupa de trabalho, sair porta fora com a calma devida, para ter tempo de olhar para o céu e sorrir, quer faça chuva ou faça sol. A rotina não é enfadonha. A rotina é um método.

Entrei numa sala de cinema no último dia dessa fuga ao quotidiano a que chamamos de férias - há uma década seria um evento costumeiro, de há uns anos para cá tem-se tornado excepcional - para ver "Dias Perfeitos", último filme de Wim Wenders. A rotina que comecei por descrever corresponde aos primeiros instantes dos dias de Hirayama, um homem que vive consigo numa pequena casa de decoração contida, limpa casas-de-banho de Tóquio com rigor e a quem ouvimos a voz pela primeira vez já o filme vai a meio. É o protagonista do filme, humano de mais para ser misantropo, recluso de menos para ser um eremita. E no entanto ele move-se silencioso pela cidade, cumprindo o seu quotidiano perene, como se de um ritual se tratasse.

"Porque é que as coisas têm de mudar?", pergunta desgostosa uma das personagens. Hirayama tudo faz para o evitar. É precisamente através da reincidência de gestos e hábitos que encontra um reconfortante sentido de novidade. As músicas que escolhe ouvir no carro, preservadas na fita de uma cassete, marcando o ritmo do início de cada dia, as copas das árvores tingidas de luz que fotografa de forma meticulosa, o olhar que lança todos os dias de manhã ao céu assim que sai de casa. Não há dois dias iguais, ainda que o exercício de os distinguir seja por vezes bem mais difícil do que aqueles passatempos que nos pedem para encontrar dez diferenças entre duas imagens.

Aprendi a não me preocupar e a amar a rotina após anos de um combate sereno contra a ideia de repetição. Continuo a aprender a consenti-la. Se a rotina é um método, a constância pode ser o seu remate, a garantia de acesso às subtilezas que ficam nos intervalos entre o que é ordinário e o que é extraordinário. O método não é infalível, tem os seus dias como tudo.

De caminho, rumo ao trabalho, passo pela estátua de Afonso Albuquerque, que continua no mesmo lugar, não tem para onde fugir. Visto daqui, rodeado de copas de árvores, a sua cor transfigura-se, de mês para mês, por vezes de dia para dia, e nem sempre reparo nesses cambiantes. Mas nesta manhã o que vejo é uma ave pousada no topo da cabeça da estátua e sorrio porque me recordo de quando, há uns meses, a minha filha me acompanhou neste trajeto dois dias seguidos. Esteve comigo também na rotina, no percurso que faço de olhos abertos, mas que poderia fazer de olhos fechados. Ao segundo dia, após ter percorrido quatro estações de metropolitano, caminhado até ao torniquete nos passos curtos a que a multidão obriga, subido as escadas rumo à plataforma do comboio, olhou para mim e disse de cara luminosa "Parece que estamos a repetir o mesmo dia". "Isso é bom?", retorqui. "É fantástico!"

 

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(Still do filme Dias Perfeitos, de Wim Wenders)

 

Marias da Paz

Março 11, 2024

Nestas eleicões calhou-me acompanhar uma secção de voto composta em exclusivo por mulheres, um quase monopólio de Marias de todos os tipos. Marias Augustas, Marias Benvindas, uma ou outra Maria da Paz. Nomes próprios na sua maioria de outro tempo. Assim que me apercebi desta circunstância, refreei alguma da ansiedade com que iniciei o dia. Confio na sageza e na humanidade das Marias. As da Anunciação, as de Fátima, as de Lourdes ou de Lurdes, das simplesmente Marias, que são poucas. Mesmo daquelas que nem se chamam Maria. A certa altura, olhei para a urna, já o dia ia longo, e imaginei os boletins amontoados, cada um a falar para os seus botões, mas também umas com os outras. As Marias do Rosário com as Marias Carolinas, a responderem logo depois às Marias do Céu e às Marias do Carmo. Quantas vozes se acumulam numa caixa negra... Num avião, as caixas negras (que na realidade são laranjas ou vermelhas) registam variações na altitude e na velocidade, mensagens e conversas e ouvimos falar delas apenas nos dias maus. Os dias de eleições podem ser dias bons e maus, muito bons e muito maus. Quando abrimos uma das caixas negras, alargamos a conversa que aqueles votos estiveram a ter durante um dia inteiro. Depois a cavaqueira alarga-se e, tantas vezes, degenera. As Marias não me desiludiram muito, no entanto não posso afirmar o mesmo em relação ao resto da conversa. O que estarão agora a pensar as Marias da Paz?

Uma partida

Dezembro 07, 2023

Uma asa espalmada numa largueza de voo rasante, um crânio exposto em despudorada nitidez, entranhas desordenadas servidas em bufete.

Da anatomia dos pombos sei apenas o que vejo no asfalto.

 

No céu do meu quarto, há uma mancha de humidade em forma de pássaro. 

Mas hoje, o que vejo quando acordo e espreito pela janela é um pombo de peito para cima, apontado às nuvens.

O pássaro sorri, no eterno repouso trocista a que os defuntos se dedicam, como quem se prepara para pregar uma partida. 

Portanto não dorme, está morto. Mas sorri, está morto.

 

Assim que lhe virar as costas, o pombo abrirá um olho para verificar se ninguém o vigia. Rebolará para um dos lados e, por fim, voltará a voar. 

Isto se a morte fosse uma partida e não a partida.

 

Mastigo o pequeno-almoço de olhos presos naquele corpo cinza.

Temo que o pombo ali fique, a aprodrecer à minha frente, reclamando a sua desaparição por um qualquer necrófago.

Ou então que se mantenha por ali em troça, animal empalhado sem sala de estar para repousar.

Não é troféu, nem ave de estimação.

 

Vejo-o de novo enquanto me visto.

Mantenho-o sob o meu olhar a partir da janela da cozinha, da janela da casa de banho, da janela do quarto das minhas filhas, da janela do nosso quarto, da janela da sala, até sair pela porta.

Ou até me esquecer dele.

 

Mas, na verdade, quando regresso tento procurá-lo.

O pombo morto, estendido no telhado do prédio em frente, desapareceu.

Imaginem se a morte fosse a partida e não uma partida.

 

 

 

Um muro

Dezembro 04, 2023

 

Um longo muro que fala e se cala ao longo dos 200 metros, mais coisa menos coisa, que temos de percorrer a seu lado. Deixa-me sempre a cismar nos nomes e nos desenhos que o apanharam de surpresa antes de serem apagados, nas mensagens que foram rapidamente soterradas por uma tinta que nunca é igual à anterior. Há um rasto inesperado a cada passo, um padrão de geometrias variáveis, cores e bolores, que tornam o muro mais espalhafatoso do que se estivesse coberto de grafíti. Camada sob camada. Ou será camada sobre camada?

 

 

Cloridrato de propranolol

Outubro 31, 2023

Sem Títulosss-1.jpg

 

Todas as manhãs tomo um comprimido cor-de-rosa,

excepto nas manhãs em que me esqueço de o fazer.

 

Lendo a bula, descobri que o cloridrato de propranolol

é indicado para o controlo da angina de peito,

das arritmias cardíacas, da taquicardia por ansiedade

e do tremor essencial, que é afinal um tremor dispensável.

 

Controla também a hipertensão, razão pela qual o tomo todos os dias,

excepto nos tais dias em que me esqueço de o tomar.

 

O sangue continua a pressionar em demasia as artérias do meu corpo.

Estou vivo, excepto quando me esqueço.

 

 

 

Sorriso amarelo

Outubro 23, 2023

"Estava a sorrir porque tu pediste", disse-me. Terei pedido?

A expressão Momento Kodak era bastante popular na minha infância, um slogan infiltrado na linguagem do quotidiano para assinalar aqueles momentos que mereciam ser recordados. Agora perdi-a de vista. A marca perdeu notoriedade? Talvez. Perdeu-se sobretudo esse velho capricho de eternizar um instante numa só imagem, sabendo que, mesmo no negativo da fotografia, a felicidade é ainda e sempre positiva, por mais vezes que o revelemos. A nostalgia tem destas coisas.

Ela, a minha filha mais velha, disse-me que sorriu porque lhe pedi. Mas na verdade não lhe pedi. Pelo menos naquele momento. Naquele instante que tentei cristalizar. Apenas segurei o telemóvel ao nível dos olhos, mirando-a através de um ecrã. Agora que penso enquanto escrevo, transportando-me para o seu ponto de vista, constato que do meu rosto ela veria apenas uma boca, que provavelmente sorria. É o instinto a impor-se. O código continua a ser simples, mesmo sem Kodak. Se vou tirar uma fotografia, tenho de sorrir. Mesmo que não tenha vontade, mesmo que aquele sorriso sobreviva apenas àquele segundo de fotografia. Mesmo que seja aquele sorriso que fique para a história e não a boca sem expressão com que passamos grande parte do dia.

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"Sorri!", dizia-lhe quando ela era ainda mais pequena. Mais criança. No instante a seguir tinha de dizer uma palavra despropositada ou fazer uma careta, porque o primeiro sorriso que ela me entregava era tão falso, tão amarelo, tão absolutamente falsificado para imitar a sua ideia de um sorriso, que me fazia rir tanto quanto me constrangia. Imaginava-me a rever aquela imagem dez anos depois e a conjecturar uma infância de sorrisos de plástico. Tentava quebrá-lo e, na maior parte das fotografias que ainda tenho em álbuns ou pastas, é esse segundo sorriso genuíno que preferi guardar.

Creio que perdemos de vista os momentos Kodak. A felicidade em bruto, concentrada num só instante, fragmentou-se em milhares de pequenos pedaços. Dezenas de imagem em catadupa, a felicidade numa cascata de scroll. Tão em catadupa que corre o risco de banalizar. Temos fotos do momento em que nos preparamos para posar, ajeitando a roupa, ajeitando o próprio sorriso, do momento em que nos lembramos que temos de sorrir ou de quando alguém recorda que o temos de fazer, do momento do sorriso e do momento em que desmanchamos o sorriso para voltar ao normal. Um poço sem fundo. Desses tempos dos inatingíveis instantes Kodak, restam aquelas fotografias em que alguma pessoa fica de olhos fechados. Porque apesar de tudo continuamos humanos.

Porém, numa passagem acelerada pelas imagens que guardo no telemóvel, tranquiliza-me encontrar vários sorrisos genuínos das minhas filhas. E caretas e amuos e momentos em que nem se aperceberam de que estavam a ser fotografadas. Consigo até revivê-las a crescer, como se estivesse a folhear um flip book. Os dentes da Salomé a caírem, outros que nascem de seguida. A vida a romper. A vida que rasga, que veio para ficar.

Nos meus albuns de família estou sempre a sorrir. Ora com os dentes todos, ora discretamente, mas a sorrir. Quase sempre. Há uma birra em Porto Covo, uma cara de imbecil à frente da boneca Eva no Jardim Zoológico. Há também umas fotografias em que choro, já pré-adolescente - ou mesmo adolescente -, quando os meus pais queriam que almoçasse língua de vaca estufada. Mas, na maioria das fotografias, sorrio. Devo ter sorrido durante muito tempo para que esse esgar de felicidade ficasse gravado na película fotográfica. É-me impossível olhar para essas fotografias e não sorrir. Tal como quando seguimos pela rua e alguém nos mostra uma boca sorridente, sorrimos também. O mesmo acontece quando olho para uma fotografia antiga. Sorrio de volta ao passado. (Apesar disso, o comentário da minha filha inquietou-me. Quantos sorrisos amarelos se escondem nas fotografias da nossa infância? )

"Estava a sorrir porque tu pediste", disse-me a Salomé. Mas eu não tinha pedido. Não naquele instante, não naquele dia, talvez noutra ocasião de feição semelhante. Não fará parte deste ofício de ser pai ou mãe querer encontrar sorrisos nas caras que já imaginávamos com detalhe, ainda dentro da nossa cabeça, antes de terem nascido? Nem que seja para uma fotografia. Nem que seja como resposta a uma careta. Que seja espontâneo, franco, leve e duradouro. Isso basta-me.

 

Nao há despensas arrumadas

Setembro 29, 2023

Desarrumo o passado como sei. De um jeito manso.
 
Entro num edifício depois de ter atravessado aquela porta pela primeira vez há vinte e quatro anos. Quando regressamos aos locais do nosso passado, encontramos muitas vezes um mundo de impressões reconhecíveis, porém em bizarra miniatura. Desta vez não. Reconheço o espaço e os corredores são mais familiares do que exíguos. Encontro locais que mudaram, não me surpreendo. Todos mudamos em vinte e quatro anos, até este maciço e ordenado monte de pedras, cimento, tinta, telhas, longas tábuas de madeira corrida. Ali ao lado, ainda junto à entrada, havia uma despensa que guardava mantimentos para atividades no exterior. De ali de dentro roubávamos bolachas, reservadas para a duração integral daquela colónia de férias. 
 
Entro com trinta e seis anos, como entrei com doze: no Verão, de calções. Regresso maior, com a minha família, que inclui duas crianças irrequietas. Elas vão enchendo os corrredores daquele ruído inconfundível a que chamamos ora de insubordinação, ora de inconsciência, ora de infância. Reconheço os corredores daquela enorme casa apenas quando elas os entopem de barulho e sinto-me a sobrevoar esse ano, quase longínquo, em que aqui cheguei com doze, quase treze, num bando de adolescentes e pré-adolescentes, tal como eu. E agora peço às minhas filhas para falarem mais baixo - nestes quartos estão agora adultos, não miúdos em ebulição. 
 

Cadeiras de madeira dispostas em círculo por baixo de uma grande árvore

Aquele era o Verão de todas as promessas. Um primeiro Verão longe da família. Quinze dias, mais coisa, menos coisa. Agora, deitado numa espreguiçadeira junto à piscina, estou a ler a autobiografia do Bruce Springsteen. A dado momento, quando discorre sobre a sua infância e juventude, o músico inicia um capítulo assim: "no princípio, a Terra estava coberta por uma enorme escuridão. Havia o Natal e o dia de anos, mas, para lá disso, havia um vazio infinito e autoritário. (...) Não havia futuro, nem história. Não havia nada com que um miúdo pudesse preencher as férias de verão." Até que se deu um terremoto, em sentido figurado, mas com efeitos replicantes: "A pequena parte do mundo onde habito acabou de tropeçar num momento irreversível." Poderia ser esse tal momento, despontado há mais de vinte anos, em que nos afastámos da família para viver dias de duração indefinível, sabendo que não voltaríamos a casa ao final do dia, mas apenas ao fim de duas semanas, um horizonte que parecia a cada dia mais longínquo, enquanto pensávamos pela primeira vez naquilo que poderíamos ser fora do núcleo onde havíamos crescido, no quanto poderíamos mudar, nas voltas que daríamos até regressar ao ponto de partida ou mesmo na hipótese de não voltar de vez porque entretanto tínhamos descoberto que podíamos ser mais do que uma pessoa, tudo isto enquanto tirávamos bolachas da despensa. A vida estava a começar, conseguíamos senti-la. Para o Bruce, esse "momento irreversível" foi, nada mais, nada menos, do que a revolucionária aparição do Elvis Presley nos ecrãs de televisão norte-americanos. Para mim, umas férias junto de pares. Um sismo.
 
Entro neste edifício, que agora chamam Casa e que já foi Preventório. Quem terá sido isolado aqui? No meu tempo, ou melhor, nessa outra época em que eu julgava dominar o tempo, acreditávamos todos na sobrevivência das amizades. Escrevemos cartas, já que nenhum tinha telemóvel. Escrevemos cartas. Escrevemos mais cartas. Até deixarmos de as escrever porque a amizade não sobreviveu ao papel.
 
Regresso à espreguiçadeira, mesmo ao lado da piscina, onde descubro a infância do Bruce Springsteen. Há quanto tempo deixei de mergulhar nas férias? Há quanto tempo as férias deixaram de ser um mar de dias? Em dois mil e vinte e três, vigio duas crianças que saltam para aquela piscina com a mesma energia com que o fiz há quase vinte e cinco anos. As minhas filhas saltam com a liberdade com que outros o fizeram antes e depois de mim. É comovente descobrir que as linhas temporais se cruzam, se cosem umas às outras. Estamos todos ali, mais uma vez. A algumas dezenas de metros, vejo cadeiras distribuídas em círculo junto a uma árvore que, pelo tamanho, já devia lá estar quando a minha versão pré-adolescente ali passou. Não me lembro de ávores, lembro-me de pessoas. Lembro-me de pessoas, mas não me lembro de nomes. Chorámos muito na despedida. Erguemos um mundo em duas semanas e assistimos comovidos ao seu desabamento. Provavelmente não foi nada disto. Invento um caminho de passadas mais pequenas do que as que consigo agora dar para ver se encontro as minhas pegadas da altura.
 
Desarrumo o passado do único modo que o tempo me ensinou a fazer, mansamente. Ali ao lado da entrada, naquele recanto mais escuro, mesmo ao lado da escadaria, pouco antes de chegar ao refeitório, havia uma despensa. A tal despensa onde os monitores guardavam os mantimentos para a ceia e para as visitas de campo. Entro na despensa para tirar umas bolachas. Afinal é uma casa de banho. Terá sido sempre assim?  O passado nunca é uma despensa arrumada. 
 
Entro numa porta. Entro noutra porta. Saio em direção ao jardim, onde vejo duas mulheres, responsáveis pela limpeza do espaço, a carregarem enormes trouxas de roupa. Partem de uma ponta do jardim, atravessam os corredores e terminam o trajeto na porta da rua. Lençóis de baixo, lençóis de cima, fronhas, toalhas, tecido embrulhado sem rigor.
 

Vários sacos de roupa, alguns de pano outros de plástico preto, amontoados junto a uma porta de vidro. 

Na primeira noite que ali dormimos, que foi a última noite da colónia de férias deste ano, ouvimos música no pátio das traseiras e espreitámos pela janela. Uns quantos miúdos dançavam coreografias que pareciam saber de cor, outros sentados a um canto falavam entre si ou com os telemóveis. O mundo não parou desde a altura em que eu fui um daqueles miúdos, salvaguardadas as devidas distâncias. Permanece sempre alguma coisa subtil, impalpável. Julgo. Ou julguei. Dois dias depois dessa noite, as duas mulheres continuam a carregar as trouxas de roupa até à entrada da casa. São fardos pesados, não passam despercebidos. São, ao mesmo tempo, as únicas provas de que até há dois dias ali estiveram trinta miúdos - como eu naquele Verão de mil novecentos e noventa e nove -, a apostarem futuros naqueles dias estivais como fichas de casino. Sem se darem conta nem da sorte, nem do risco. No jardim encontro outros vestígios. Numa grande caixa de plástico, um chinelo, um pacote de lenços, um baralho de cartas e várias meias sem par deixadas para trás.
 
Não me lembro se no meu Verão de noventa e nove me esqueci de alguma coisa naquela casa, onde agora entro. Na porta vão-se acumulando as trouxas de roupa suja. Em breve, alguém as virá buscar. Serão lavadas a altas temperaturas, secarão ao vento e, quando aí estiverem, alvas como o começo do dia, a brisa fará com que a roupa ondule e confesse em sussurros estas e outras histórias de séculos que as suas fibras conservam.
 
 

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