Desarrumo o passado como sei. De um jeito manso.
Entro num edifício depois de ter atravessado aquela porta pela primeira vez há vinte e quatro anos. Quando regressamos aos locais do nosso passado, encontramos muitas vezes um mundo de impressões reconhecíveis, porém em bizarra miniatura. Desta vez não. Reconheço o espaço e os corredores são mais familiares do que exíguos. Encontro locais que mudaram, não me surpreendo. Todos mudamos em vinte e quatro anos, até este maciço e ordenado monte de pedras, cimento, tinta, telhas, longas tábuas de madeira corrida. Ali ao lado, ainda junto à entrada, havia uma despensa que guardava mantimentos para atividades no exterior. De ali de dentro roubávamos bolachas, reservadas para a duração integral daquela colónia de férias.
Entro com trinta e seis anos,
como entrei com doze: no Verão, de calções. Regresso maior, com a minha família, que inclui duas crianças irrequietas. Elas vão enchendo os corrredores daquele ruído inconfundí
vel a que chamamos ora de insubordinação, ora de inconsciência, ora de infância. Reconheço os corredores daquela enorme casa apenas quando elas os entopem de barulho e sinto-me a sobrevoar esse ano, quase longínquo, em que aqui cheguei com doze, quase treze, num bando de adolescentes e pré-adolescentes, tal como eu. E agora peço às minhas filhas para falarem mais baixo - nestes quartos estão agora adultos, não miúdos em ebulição.
Aquele era o Verão de todas as promessas. Um primeiro Verão longe da família. Quinze dias, mais coisa, menos coisa. Agora, deitado numa espreguiçadeira junto à piscina, estou a ler a autobiografia do Bruce Springsteen. A dado momento, quando discorre sobre a sua infância e juventude, o músico inicia um capítulo assim: "no princípio, a Terra estava coberta por uma enorme escuridão. Havia o Natal e o dia de anos, mas, para lá disso, havia um vazio infinito e autoritário. (...) Não havia futuro, nem história. Não havia nada com que um miúdo pudesse preencher as férias de verão." Até que se deu um terremoto, em sentido figurado, mas com efeitos replicantes: "A pequena parte do mundo onde habito acabou de tropeçar num momento irreversível." Poderia ser esse tal momento, despontado há mais de vinte anos, em que nos afastámos da família para viver dias de duração indefinível, sabendo que não voltaríamos a casa ao final do dia, mas apenas ao fim de duas semanas, um horizonte que parecia a cada dia mais longínquo, enquanto pensávamos pela primeira vez naquilo que poderíamos ser fora do núcleo onde havíamos crescido, no quanto poderíamos mudar, nas voltas que daríamos até regressar ao ponto de partida ou mesmo na hipótese de não voltar de vez porque entretanto tínhamos descoberto que podíamos ser mais do que uma pessoa, tudo isto enquanto tirávamos bolachas da despensa. A vida estava a começar, conseguíamos senti-la. Para o Bruce, esse "momento irreversível" foi, nada mais, nada menos, do que a revolucionária aparição do Elvis Presley nos ecrãs de televisão norte-americanos. Para mim, umas férias junto de pares. Um sismo.
Entro neste edifício, que agora chamam Casa e que já foi Preventório. Quem terá sido isolado aqui? No meu tempo, ou melhor, nessa outra época em que eu julgava dominar o tempo, acreditávamos todos na sobrevivência das amizades. Escrevemos cartas, já que nenhum tinha telemóvel. Escrevemos cartas. Escrevemos mais cartas. Até deixarmos de as escrever porque a amizade não sobreviveu ao papel.
Regresso à espreguiçadeira, mesmo ao lado da piscina, onde descubro a infância do Bruce Springsteen. Há quanto tempo deixei de mergulhar nas férias? Há quanto tempo as férias deixaram de ser um mar de dias? Em dois mil e vinte e três, vigio duas crianças que saltam para aquela piscina com a mesma energia com que o fiz há quase vinte e cinco anos. As minhas filhas saltam com a liberdade com que outros o fizeram antes e depois de mim. É comovente descobrir que as linhas temporais se cruzam, se cosem umas às outras. Estamos todos ali, mais uma vez. A algumas dezenas de metros, vejo cadeiras distribuídas em círculo junto a uma árvore que, pelo tamanho, já devia lá estar quando a minha versão pré-adolescente ali passou. Não me lembro de ávores, lembro-me de pessoas. Lembro-me de pessoas, mas não me lembro de nomes. Chorámos muito na despedida. Erguemos um mundo em duas semanas e assistimos comovidos ao seu desabamento. Provavelmente não foi nada disto. Invento um caminho de passadas mais pequenas do que as que consigo agora dar para ver se encontro as minhas pegadas da altura.
Desarrumo o passado do único modo que o tempo me ensinou a fazer, mansamente. Ali ao lado da entrada, naquele recanto mais escuro, mesmo ao lado da escadaria, pouco antes de chegar ao refeitório, havia uma despensa. A tal despensa onde os monitores guardavam os mantimentos para a ceia e para as visitas de campo. Entro na despensa para tirar umas bolachas. Afinal é uma casa de banho. Terá sido sempre assim? O passado nunca é uma despensa arrumada.
Entro numa porta. Entro noutra porta. Saio em direção ao jardim, onde vejo duas mulheres, responsáveis pela limpeza do espaço, a carregarem enormes trouxas de roupa. Partem de uma ponta do jardim, atravessam os corredores e terminam o trajeto na porta da rua. Lençóis de baixo, lençóis de cima, fronhas, toalhas, tecido embrulhado sem rigor.
Na primeira noite que ali dormimos, que foi a última noite da colónia de férias deste ano, ouvimos música no pátio das traseiras e espreitámos pela janela. Uns quantos miúdos dançavam coreografias que pareciam saber de cor, outros sentados a um canto falavam entre si ou com os telemóveis. O mundo não parou desde a altura em que eu fui um daqueles miúdos, salvaguardadas as devidas distâncias. Permanece sempre alguma coisa subtil, impalpável. Julgo. Ou julguei. Dois dias depois dessa noite, as duas mulheres continuam a carregar as trouxas de roupa até à entrada da casa. São fardos pesados, não passam despercebidos. São, ao mesmo tempo, as únicas provas de que até há dois dias ali estiveram trinta miúdos - como eu naquele Verão de mil novecentos e noventa e nove -, a apostarem futuros naqueles dias estivais como fichas de casino. Sem se darem conta nem da sorte, nem do risco. No jardim encontro outros vestígios. Numa grande caixa de plástico, um chinelo, um pacote de lenços, um baralho de cartas e várias meias sem par deixadas para trás.
Não me lembro se no meu Verão de noventa e nove me esqueci de alguma coisa naquela casa, onde agora entro. Na porta vão-se acumulando as trouxas de roupa suja. Em breve, alguém as virá buscar. Serão lavadas a altas temperaturas, secarão ao vento e, quando aí estiverem, alvas como o começo do dia, a brisa fará com que a roupa ondule e confesse em sussurros estas e outras histórias de séculos que as suas fibras conservam.