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Longitudinal

Ficções #2

Setembro 16, 2009

 

Horácio tinha deixado a senhora em casa e ficou um bocado sentado dentro do carro antes de entrar. Aquela matiné não tinha corrido nada bem. Os pés falharam-lhe no tango e doía-lhe só de pensar na sua prestação ridícula na salsa. Custava-lhe perceber como é que aquela senhora tinha aceite que ele a levasse até casa depois de todos aqueles momentos tão embaraçosos.

 

Só lhe vinha à cabeça uma resposta. E foi isso que o fez arrancar um carro, com um sorriso nos beiços. Só podia ser isso. Ele não andava a olhar para os amigos com outros sentidos. Não apreciava, não senhor. Mas ele tinha olhos, isso tinha. Tinha dois olhos ainda resistentes às tristezas dos 75 anos.

 

Entrou em casa e antes de ir até ao quarto foi à casa de banho livrar-se do peso incómodo que sentia na bexiga. Olhou-se de alto a baixo no espelho e voltou a sorrir. Depois de pôr a placa num copo pensou: «Sou bonito». E sorriu de novo, desta vez apenas com as gengivas. «Até que sou um velhote jeitoso».

 

Vestiu o pijama de cetim que comprou um dia depois de ter ficado viúvo. Foi para a cama e acabou o dia a rezar  e a pedir a Deus que o protegesse da calvície, enquanto tirava o capachinho.

 

a partir de uma frase solta escrita em 2006

Doloroso

Setembro 15, 2009

 

 

É doloroso, este cartaz australiano do novo filme do Von Trier. Esperemos que o filme também o seja, para não deitar por água abaixo as expectativas.

Ficções #1

Setembro 14, 2009

 

 

Ele chega a casa, tarde, e dá com a ela a dormir no sofá com a televisão ligada e uma revista aberta e caída no chão. Umas vezes pega-a ao colo e leva-a até à cama. Outras deixa-a a dormir enquanto vai à cozinha buscar algo para comer. Outras vezes, ainda, fica sentado ao lado dela a ver a televisão que ainda sobra naquelas horas.
 
Neste dia, precisamente, decidiu levá-la para a cama, aconchegá-la e beijar-lhe os lábios ensonados num misto de desejo e banalidade, que tanto o irritava como o arrepiava. Mas em vez de se deitar ao seu lado como costumava, dirigiu-se para a cozinha, aqueceu leite e foi para o sofá.
 
Desligou a televisão. Ficou a olhar fixamente para o ecrã negro, que o mostrava numa versão escura. Nada daquilo o intrigava a horas tão tardias e por outro lado incomodava-o esta falta de inquietação. Voltou ao quarto para espreitar se ela continuava a dormir, desceu as escadas, vestiu o casaco, subiu as escadas de novo e voltou a sentar-se no sofá da sala à espera.
 
Quando sentiu que era a hora certa, desceu as escadas de novo. Calmamente, saboreando cada degrau com toda a sola dos sapatos. Procurou a pistola que tinha no bolso de dentro do casaco (para usar em caso de emergência) e disparou directamente contra a cabeça.
 
No andar de cima e no outro canto da casa, ela tinha acordado antes do disparo porque a almofada estava a magoá-la. Estranhou a ausência dele e levantou-se, ainda a cambalear, andando todo o corredor em bicos dos pés para não sentir frio. Viu-o a descer a escada e seguiu-o com o olhar, escondida mas não desconfiada, enquanto ele as descia com o tal passo vagaroso, pareceu-lhe.
 
Esteve escondida o tempo todo e assistiu a tudo. Enquanto ele agarrava na pistola e mesmo no momento em que ele disparou de olhos frios. Nada fez para o evitar. Não deixou sair nenhum grito. Só quando todo o sangue acabou de jorrar da cabeça dele se levantou, andou até ao corpo que ainda se parecia agitar, se ajoelhou e beijou a testa do marido, num beijo que tinha tanto de amor como de repugnância. 
 
Fez o caminho de volta a cama de olhos fixos no chão até se deitar sem se aconchegar nos lençóis. Antes de adormecer olhou para o relógio digital na mesa-de-cabeceira e lamentou ter de acordar tão cedo no dia seguinte para ir às finanças.
 
Junho de 2006

Cansa

Setembro 13, 2009

 

O José Gomes Ferreira escreveu que «viver sempre também cansa». Uma senhora de 91 anos com quem falei hoje quase que o citou, embora eu não tenha percebido se o fez voluntariamente ou não.  «Viver muito é bonito. Mas também cansa». Pode ser uma frase mais singela mas arrisca-se a ganhar em honestidade.

As pessoas de Agnès

Setembro 10, 2009

 

 

Agnès Varda não confiou a tarefa de contar a história da sua vida a qualquer um. Ainda bem. Esta tarefa, para ser levada a bom porto, tem de ser executada pelo próprio.  A avançar e a recuar nos tempos certos. E a dosear os altos e baixos de uma jornada de mais de 80 anos seguindo uma memória de pleno direito: a de quem pode voltar a pôr os pés nas suas pegadas e sentir-se confortável.

  

Logo no início de «As Praias de Agnès», Varda diz-nos o seguinte:


Se abrissem as pessoas, encontrariam paisagens.
A mim, se me abrissem, encontrariam praias.

 

E encontramos, é verdade. Mas com as praias vêm as pessoas e, no fim das contas, sem elas as praias de Agnès não teriam o mesmo aroma. Jacques, Jean, Rosalie, Mathieu ou Jane... Bastam os nomes próprios para alinhar  no jogo que se instala entre a honestidade necessária para revelar qualquer passado e a ironia indispensável para o fazer sem medo.

 

E se também fizéssemos o mesmo exercício? Que pessoas saíriam de cá de dentro se nos abrissem?

 

O filme «As Praias de Agnès» continua a resistir numa sala dos cinemas City Alvalade.

 

Cried for no one

Setembro 09, 2009

 

 

 

Your day breaks, your mind aches
You find that all her words of kindness linger on
When she no longer needs you

She wakes up, she makes up
She takes her time and doesn't feel she has to hurry
She no longer needs you

And in her eyes you see nothing
No sign of love behind the tears
Cried for no one
A love that should have lasted years

You want her, you need her
And yet you don't believe her when she says her love is dead
You think she needs you

And in her eyes you see nothing
No sign of love behind the tears
Cried for no one
A love that should have lasted years

You stay home, she goes out
She says that long ago she knew someone but now he's gone
She doesn't need him

Your day breaks, your mind aches
There will be times when all the things she said will fill your head
You won't forget her

And in her eyes you see nothing
No sign of love behind the tears
Cried for no one
A love that should have lasted years

 

Paul McCartney

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