As vidas de formigas
Janeiro 23, 2017
"É a lei da vida, e não estão assim tão mal, os filhos nunca conseguem compreender as ambições dos pais, olham para trás e vêem-nos ali, imóveis e eternos, no lugar que é o deles, nem mais, nem menos, sem suspeitarem que trinta anos antes os pais chegaram ao buraco, com a esperança de que fosse apenas uma passagem, um interlúdio de sacrifício numa narrativa épica de ascenção, e tinham demorado uma vida inteira para perceber que aquela era a última estação e os filhos nunca perceberam que tinham subido fincando os pés nos lombos sofridos dos pais. E estes, com o orgulho de disponibilizarem os lombos doridos aos filhos, exibindo-os nos cafés, com as mulheres e os maridos que não eram do bairro, os netos saudáveis e letrados, a crescer em amplos infantários e casas com aquecimento central, a ignorar os avós e a pobreza toda de um bairro que haveria de ser sempre um bairro, onde as pessoas se conheciam e cumprimentavam como se fossem da família, "cumprimenta ali aquela senhora que é amiga da avó". Os filhos, saudáveis, letrados e bons dentes; os pais uma vida inteira encavernados mas que agora podiam exibir os filhos, saudáveis e letrados, prova de que tinham chegado à superfície, tinham estudado com os filhos dos doutores e agora tinham bons carros, bons dentes e tinham-lhes dado bons netos, que orgulho, a vida de formiga para chegar a ver aqueles netos."
(As Pequenas Coisas, Bruno Vieira Amaral)