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Em minha casa, quando não sei onde pára um objecto qualquer, há uma expressão costumeira atirada na minha direcção: "procura nos bolsos". Neste caso, nos bolsos dos meus casacos e das minhas calças. É uma piada mas daquelas que se cobrem desavergonhadamente de verdade. Já encontrámos chaves perdidas há vários dias, documentos dados como desaparecidos durante semanas - aquilo que conseguirem imaginar. Não poucas vezes tem o seu quê de surpreendente. E não falo de voltar a encontrar uma nota de cinco euros que recebi como troco num café. Falo de achar possibilidades.
Nas últimas semanas voltei a usar um casaco que já não saía do cabide há alguns meses. Enfiei as mãos nos bolsos, começando a esvaziá-los, e encontrei potenciais peças de um potencial museu. O museu dos planos que não cumprimos.
Num dos bolsos encontrei um folheto com a programação de uma série de transmissões de peças de Shakespeare num cinema de Lisboa. Em directo, a partir de Londres. Nessa altura, há muitos meses, o bardo inglês faria quatrocentos anos - se se tivesse mantido mais vivo do que aquilo que está. Este ano já faria quatrocentos e um e ninguém festeja esse tipo de aniversários. Reparei que tinha sublinhado duas sessões, em dias e horários que, naquele momento, pareciam possíveis de cumprir. Os planos falharam. Nem me lembro exactamente que outros planos se intrometeram na sua concretização. Reconheço apenas neste folheto o rosto amarrotado de uma possibilidade.
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Segunda-feira, onze da noite. Um homem aproxima-se do microfone no palco do bar Templários, em Lisboa. Veste uma t-shirt escura onde se lê "out of place" mas a atitude desmente esse statement. Está obviamente no seu elemento mesmo que a última vez que tenha actuado diante de uma plateia tenha sido há quarenta e dois anos. Tinha dezoito anos.
Nessa época tocava, cantava, compunha. Entretanto casou, teve uma filha, teve outra, teve empregos, teve netos, teve abalos sísmicos dos bons e dos maus. O pai da Sara chegou aos sessenta há pouco mais de três semanas. Continua a tocar, a cantar e a compôr. Orgulha-se da sua música, exibe esse orgulho como um acto de resistência. Mesmo no interior da própria família, é difícil encontrar validação quando a vida já deu tantas voltas que acabou por reduzir uma fatia importante da nossa identidade a um mero acessório. Mas o Rui, o pai da Sara, persiste. Mesmo que tenha de ouvir a sua música com auscultadores, para evitar que o resto da família lhe peça para baixar o volume.
Quantos planos por cumprir se podem encaixar num período de tempo tão longo? É impossível não conjecturar hipóteses, possibilidades. Como seria se o concerto seguinte não tivesse demorado tanto tempo a acontecer? Se o Rui tivesse tido tempo e oportunidades suficientes para se aborrecer de dar concertos. Há vidas mais curtas do que as décadas que se demoraram entre estes dois momentos de exposição pública. Quantas dessas vidas se manifestam diante de nós enquanto escutamos, música a música, alguém a rebelar-se contra as expectativas?
Talvez seja isto aquilo que se sente quando nos cumprimos, quando damos a volta às possibilidades falhadas.
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De cara colada ao vidro, Lisboa ia passando pela ponta do nariz de dois miúdos espanhóis, com quem partilhei o setecentos e vinte e oito. "Olha, um castelo mágico", apontou para o alto. Não era um castelo, era o Panteão a recolher-se atrás dos telhados. "Olha, as matrículas dos carros são códigos secretos." Eram matrículas completamente normais, mesmo de acordo o padrão espanhol. "Olha, o rio está a fazer ondas." Estava, mas era apenas a esteira de um navio. "Olha, estão dois monstros escondidos atrás daquele prédio." E se estivessem mesmo?
(lá em cima, uma still do Era uma vez na América, do Sergio Leone)