Factos de dupla face
Setembro 29, 2017
"Tracey era firme na sua lealdade à memória do pai ausente, muito mais susceptível de o defender do que eu de falar com simpatia do meu, inexcedivelmente carinhoso. Sempre que a mãe falava mal dele, Tracey tratava de me levar para o quarto, ou para outro sítio privado, e rapidamente integrar o que a mãe tinha dito na sua própria história oficial, segundo a qual o pai não a tinha abandonado, não, nada disso, só que andava muito ocupado porque fazia parte do corpo de dançarinos de apoio de Michael Jackson. Poucas pessoas conseguiam acompanhar Michael Jackson a dançar - aliás, quase ninguém conseguia, talvez só houvesse vinte no mundo inteiro que estavam à altura. O pai de Tracey era uma dessas pessoas.Nem tinha precisado de chegar ao fim da sua audição - era tão bom que eles tinham percebido logo. Era por isso que quase nunca estava em casa: andava numa interminável digressão mundial. A próxima vez que estaria na cidade era provavelmente no Natal, quando Michael ia actuar em Wembley. Num dia limpo viamos este estádio da varanda de Tracey. Agora é-me difícil dizer que grau de credibilidade atribuía a esta história - havia certamente uma parte de mim que sabia que Michael Jackson, finalmente livre da família, dançava agora sozinho - mas, tal como Tracey, nunca aventei o assunto napresença da mãe dela. Como facto, aquilo era, na minha ideia, ao mesmíssimo tempo absolutamente verdadeiro e absolutamente falso, e talvez só as crianças sejam capazes de absorver factos de dupla face como estes."
(Swing Time, Zadie Smith)