"There's nothing you can show me from behind the wall"
Julho 18, 2018
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Julho 18, 2018
Julho 10, 2018
Em mil novecentos e setenta e quatro, a minha avó trabalhava na zona do Chiado, na Rua das Chagas, onde esteve até se reformar, contrariada. Numa quinta-feira desse ano, que por acaso era dia vinte cinco de Abril, apercebeu-se daquilo que acontecia a uns quinhentos metros dali, no Largo do Carmo, e saiu a correr do trabalho. Precipitou-se Bairro Alto acima e foi para casa o mais depressa que conseguiu. "Ia fazer o quê, lá para o meio da confusão?"
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Passou mais de um mês e uma vez por outra ainda dou comigo a caminhar em direcção à paragem do autocarro e não rumo à estação do metro. O autocarro levar-me-ia ao trabalho onde estive durante três anos. O metro leva-me ao actual. Podia ser uma metáfora parola sobre o desacerto crónico das nossas decisões. Não é. Os olhos retidos no ecrã do telemóvel ou nas páginas do livro são sacudidos pelo resto do corpo quando se apercebe de que não é aquele o caminho. Até há umas semanas passava sempre pelo mesmo café e snack-bar, filetes com arroz de tomate, bacalhau espiritual, iscas, salada de atum com feijão frade, tudo escrito a tinta azul numa toalha de mesa de papel, o céu à vista, agora entro no metro e vejo uma banca de fresh squeezed lemon juice e infiltrações no tecto da estação. Os pés entram na carruagem, quase sempre a primeira da frente de forma automática, porque em alguns casos o corpo é mais rápido do que julgamos, encosto-me àquele canto imediatamente a seguir à porta e fico colado às costas das cadeiras onde outras costas repousam. Uma, duas, três paragens, saio. Bem-vindo.
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Este mesmo período de mudança de trabalho coincidiu com dois espetáculos que vi no Teatro Nacional. Ensaio para uma Cartografia, de Mónica Calle, e E se elas fossem para Moscou?, de Christiane Jatahy. No primeiro, mais de uma dezena de actrizes dançam. No segundo, três actrizes falam. Em Ensaio para uma Cartografia, as actrizes estudam uma coreografia ao som do Bolero de Ravel - e não só. Mas a música é frequentemente interrompida. O que escutamos não são interpretações imaculadas. Há paragens abruptas, ouvimos os comentários dos maestros que dirigem aqueles músicos, para logo de seguida recomeçar, parar de novo e voltar ao trabalho. Os gémeos em constante tensão, o suor a escorrer-lhes pelo corpo, as gotas a desenhar-lhes marcas de esforço no rosto, o chão fica cada vez mais húmido e nós, imóveis, ficamos ofegantes. Elas continuam a dançar, e a parar, e a certa altura até ensaiam dançar em pontas. Retomam o Bolero de Ravel, numa harmonia periclitante. Não desistem, estão juntas e tornam-se um bloco que, ao seu ritmo, se arremete na nossa direcção sem nunca se tornar ameaçador. No início, a Mónica Calle tinha explicado a quem estava sentado que este espectáculo começou a ser desenhado numa altura de mudança profunda, quando ficou entregue a perguntas como estas: "Como é que se recomeça? Como é que se continua?". As mesmas inquietações podiam sair das bocas de Olga, Maria e Irina, as três irmãs (como Tchekhov, o ponto de partida) de E se elas fossem para Moscou? Quando as conhecemos, há uma festa prestes a começar. A mais nova das irmãs tem planos de mudança ainda por estragar. A irmã do meio tem planos de mudança que, na verdade, são planos de fuga. A mais velha já sabe que os planos, mesmo os infalíveis, são difíceis de concretizar. A festa começa e termina, e por esta altura já tínhamos ouvido dizer, acerca disto tudo, que "É como se a gente estivesse na beira do trampolim de uma piscina e a água em baixo, azul, cristalina, brilhando, e o passado em fila empurrando a gente pra frente e, ao mesmo tempo, segurando o salto. E, depois do salto, um longo tempo no ar, e os minutos que parecem ser eternos, porque mudar é como morrer um pouco, a gente nunca mais vai ser o mesmo."
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Mesmo quando vêm à boleia de uma sensação de alívio, voluntárias ou involuntárias, as mudanças nunca são confortáveis. O síndroma de Estocolmo recorda-nos disso, se quisermos chegar a um extremo. Mas basta pensar num corte de cabelo. Pode transformar-se num sismo de réplicas imparáveis - mesmo que a reversibilidade esteja no horizonte. Mudamos sempre um pedacinho em todas as decisões que tomamos. Mas também permanecemos. Deixei de ser jornalista. Já tinha acontecido, portanto desta vez posso dizer que deixei de ser jornalista outra vez. Digo deixar de ser, como se conseguíssemos abandonar qualquer coisa que já fomos. Não deixamos de ser netos quando os nossos avós morrem, por exemplo. Ganhamos peso, tornamo-nos diferentes, mas aquelas pessoas que só nos conheceram ou viram antes imaginam-nos magros. Se em plena revolução decidirmos tomar um atalho e correr para casa, deixamos uma parte de nós nos tanques que nem chegamos a ver. Troquei de trabalho e o meu corpo insiste em recuar à memória que formou nos últimos anos.
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Há um momento de silêncio, de serenamento, que só acontece no meu dia quando passeio a cadela à noite. Sei que existe vida no meu prédio mas todos os outros me lembram um cenário de cartão. Se a Maria soprasse como um lobo mau, desmanchar-se-iam em cascata pela rua abaixo. Num desses passeios reparei numa nova placa de uma agência imobiliária - um gentil lembrete de que afinal o mundo não pára por trás daquelas fachadas cartonadas. Vende-se "fantástica loja na Penha de França", descubro segundos depois num anúncio on-line. Está "totalmente remodelada", tem 138 m2 distribuídos por dois pisos com uma casa-de-banho em cada um deles. "Visite e deixe-se levar pelas suas ideias!". Pelo meio, como se fosse apenas um pormenor caricato da cronologia daquele espaço, a frase: "antigo estúdio da Valentim de Carvalho". Começou por ser estúdio RPE - Rádio Produções Europa, faliu, passou a Angel Studio e depois a Angel Studio I quando apareceu um número II lá para os lados de Cabo Ruivo. Nos últimos anos pertenceu, então, à Valentim de Carvalho. Terão passado por lá o José Afonso, o Sérgio Godinho, os Sitiados, os Xutos & Pontapés, a Lena D'Água, o Mário Viegas, os Mler Ife Dada, as Doce. Ou então só algum destes porque não é fácil perceber quem passou pelo estúdio I ou pelo II. Ali, o Rui Veloso gravou o primeiro álbum, e os Mind da Gap também - numa entrevista recente falaram desse estúdio "mais pequenino e localizado numa zona que era tipo um bairro". Mais arrebatador ainda: em 1982 ainda não tinha nascido; não sabia, portanto, que algumas décadas mais tarde, ia acabar a viver naquela rua, algumas portas ao lado do estúdio onde, entre a Primavera e o Verão desse ano, nascia um monumento. Entre Março e Setembro de 1982, neste estúdio que eu não consigo ver, escondido atrás de uma montra e disfarçado de loja à venda, o Fausto gravou o Por Este Rio Acima - outro gentil lembrete de que atrás destas fachadas o mundo não se cristaliza mesmo. Num prédio ao lado do meu foi burilado um monumento ao prodígio. Suspiro e até a cadela se esquece de ladrar em protesto pela espera. O estúdio que testemunhou o milagre já não é um estúdio mas antes um espaço "perfeito para negócios em open space, exposições ou até mesmo armazenamento" por 130 mil euros.
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Este ano, no vinte e cinco de Abril, a minha avó desceu a Avenida da Liberdade comigo. Ambos pela primeira vez, ainda que pelo passeio. Sorrimos com os sorrisos de desfrute de quem toma posse da boulevard larga, comprida, onde caberiam mais, mais comprida e larga fosse. Empurrámos o carrinho onde seguia a minha filha, nos seus dois anos acabados de cumprir, distraída com a multidão que lhe passava a correr pela frente. Comprámos cravos encarnados em frente ao centro de trabalho do Partido Comunista. Os pés não se trocaram uma única vez.
[Comecei a escrever um esboço disto há uns três meses mas perdi o fio à meada. Entretanto o corpo começou a enganar-se cada vez menos no caminho, até deixar de se enganar por completo.
Não sei se me devo deslumbrar ou angustiar com esta competência].
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