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Longitudinal

"Precisamos de luz porque está muito frio"

Outubro 01, 2019

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Falam-me amiúde da possibilidade de um novo olhar que os filhos nos concedem. Há quem consiga redescobrir o mundo, contemplá-lo de outra forma, próxima da mirada de uma primeira vez. Reconheço o inesperado fulgor que esses descobrimentos iniciais são capazes de revelar, ainda que por empréstimo. Já senti essa comoção através da minha filha mais velha. Mas não me consigo entregar por completo a esse maravilhamento. Há um ano, antes de um espectáculo de teatro, ouvi alguém a aconselhar outros pais a não passarem o tempo a descrever tudo o que se passava em cena. "Eles estão a ver o mesmo que vocês e até coisas que vocês não estão a ver", disseram. O olhar é o dela, procuro não me intrometer nesse processo.

No meu caso, encontrei esse sentido de redescoberta do mundo através de outro processo. Na verdade, mais do que voltar a descobrir, senti-o como um reorganizar do mundo. Refiro-me às palavras, não à sua entrada em cena, tímida, mas ao período em que o vocabulário se adensa na cabeça de uma criança, estimulada por uma delirante desordem e inquietação. 

À nossa frente, um homem passa a correr numa passadeira. "Aquele senhor está a correr?", pergunta-me. "Sim, está." "Porquê?" "Deve estar com pressa", respondo. "O que é estar com pressa?" Vejamos, poderia explicar simplesmente que é estar atrasado para um encontro ou ter muita vontade de chegar a algum sítio. E a partir daí, desdobrar-me em respostas sobre o que é estar atrasado ou ter vontade, ou ainda sobre o que é não chegar à hora que combinamos ou querer muito uma coisa. Pressenti em simultâneo as incontáveis possibilidades e a inevitabilidade de, ainda assim, acabar por lhe subtrair informação.

O que me sobressaltou neste processo não foi a urgência de encontrar vocabulário simplificado para explicar conceitos do quotidiano a uma criança de três anos. Por enquanto, a primeira explicação pareceu bastar-lhe. Mas naquele instante, senti-me incapaz de lhe dar uma visão completa do mundo, imune à fragmentação. Foi um abalo, que entendi como uma revelação sobre a dificuldade de entender tudo isto. Sobretudo sobre a provável (e sublinho provável) ineficácia de as palavras para a nossa salvação como sempre confiei. Mesmo estando na posição segura de um adulto, que se propõe ensinar alguma coisa a uma criança cuja ligeireza com que usa as palavras é a mesma com que molda a plasticina.

Tantas outras vezes, antes e depois do episódio anterior, já me equivoquei. Cometi o tal erro de lhe descrever coisas que estavam a acontecer diante dos seus olhos. Já fui demasiado infantil em explicações. Já elaborei excessivamente, como se ela fosse um adulto. Tateio as palavras como se estivéssemos ambos às escuras, à procura de um conjunto de letras preciso, e qualquer excesso nos pudesse ofuscar. A verdade é que acabo sempre desprevenido. Como quando lhe ouço uma frase como "Precisamos de luz porque está muito frio" e me delicio com a claridade desta imagem que brota de um erro. Mas será que o posso chamar de erro?

No outro dia, ouvi a conversa da Inês Meneses com o  André Tecedeiro no "Fala com Ela", que começava com o próprio a esclarecer por que demorou três décadas até conseguir traduzir o desconforto que sentia, e que o levou à mudança de género. "Eu não sabia dar um nome, porque não tinha vocabulário", afirma no início. "Pensamos o mundo com base na linguagem que temos", complementa já no final da entrevista. Neste percurso de reordenamento, que passa pela adaptação da linguagem usada para se referir a si mesmo, o filho também o ensinou. "Não vais deixar de ser minha mãe", disse-lhe. Chama-o de mãe mas trata-o no masculino. "É uma gramática moderna, digamos".

Afinal, regresso comprometido às palavras, nesta fase em que a minha filha mais velha as usa sem parar, sem pensar, sem digerir. Enquanto as devolve após as ouvir de relance, no mais puro roubo por esticão, enquanto as imprime de sentidos, generosa, ingénua e desarmante. Numa manhã de um destes dias: "Encontrei uma migalha", aponta na direcção do rosto dela. "Onde?" "Nos olhos." "Ah, então é uma remela." Acabo sempre por me render às palavras.

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