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Longitudinal

Uma casa #2

Janeiro 31, 2020

Vizinhos

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Descobri os vizinhos depois dos trinta. Antes disso eram apenas nomes como fronteiras ou entidades como fantasmas. O terreno do senhor Cesário, acolá atrás do muro, onde aterravam bolas e G.I. Joes de pára-quedas. Aquela nespereira, de tronco fincado no terreno de outra vizinha, que fazia pender generosos ramos sobre o nosso quintal - e eu nunca gostei de nêsperas. Anos mais tarde, um baldio de ervas altas de um lado, a estrada nacional à frente, a residência sazonal de uns primos do outro lado, e uma parede mal caiada para além da qual se adivinhava a presença revezada de uma família humana e de uma vara de porcos. Vivi mais de um ano num prédio em Lisboa sem ter trocado uma só palavra com outra pessoa que lá morasse. Um dia abri a porta de casa distraído e vi um galgo afegão, de pêlo sedosamento sobranceiro, de olhos postos em mim. Não havia qualquer pessoa ao lado, o cão era o seu próprio dono, sem trelas. Fechei a porta num ápice, rendido à superioridade daquele olhar, sobretudo surpreendido por ter um cão como vizinho. A vizinhança que descobri depois dos trinta não é feita de cães, nem de pessoas, nem daquela pitada de sal de que precisamos de vez em quando, nem se sossega com uns bons dias trocados nos degraus das escadas. Pelo menos, não só disso.

Comecei a pensar nesta vizinhança na mesma altura em que, a propósito de um trabalho sobre os 150 anos da Estação de Santa Apolónia, andei às voltas por aquela área. Numa conversa inicial com uma trabalhadora da (então) CP, ouvia-a referir-se àqueles que viviam paredes meias com a estação como "os confinantes". A palavra fez-se ouvir de uma forma especial, desconfiei dela graças à noção de encerramento que o verbo confinar contém. Como desconfio de quem cola autocolantes amarelos na caixa de correio a rejeitar publicidade não endereçada. Mas bastou avançar por uns degraus, sondando outros pisos, tal como devemos proceder com as palavras, para chegar ao significado que essa pessoa lhe atribuía. A estação e as pessoas que vivem, trabalham, dançam à sua volta são vizinhos porque partilham os mesmos limites. As paredes pertencem a quem se esconde no seu interior ou a quem quer passar despercebido lá fora, do outro lado? E qual é mesmo o outro lado? Partilhar limites parece-me meio caminho andado para deixar de os estabelecer - e ainda bem.

Se digo que descobri os vizinhos depois dos trinta, digo também que me descobri como vizinho por essa altura. Lentamente passei a encarar a vizinhança como um corpo único, cuja organicidade se sentia em pequenos rituais. A imagem que reproduzo aqui, no topo do texto, é um exemplo disso. Quando estendia a roupa e, por distração ou aselhice, me escapavam algumas peças de vestuário para o quintal do rés-do-chão, sabia que mais tarde ou mais cedo, elas iriam aparecer à minha porta. O vizinho do primeiro andar fazia questão de as resgatar (como foi o caso daquela meia) e devolver ao puxador da nossa porta, a par das molas igualmente caídas. Outro episódio: há uns anos, pouco depois de ter sido pai pela primeira vez, percorria os corredores do supermercado do bairro quando uma senhora parecida com a minha avó decide interromper o meu alheamento. Perguntou pela mãe da bebé, pela bebé, pelo nome que lhe tínhamos dado e sorriu. "Sabe, é que eu fui acompanhando a gravidez..." Nunca tínhamos falado, não me lembro de até aquele momento a ter olhado tempo suficiente para me recordar da sua cara. No entanto ela lá estava, na janela do rés-do-chão do prédio em frente, e tinha visto uma barriga crescer com o entusiasmo de quem já descobriu o que é isto de ser vizinho há muito tempo. Nessa altura eu ainda estava a descobri-lo.

No último dia de mudanças de uma casa para outra, cruzei-me com uma moradora recente no meu antigo bairro. Tinha decidido abrir um café num espaço que já tinha sido uma padaria. Reuniu durante meses o material necessário, foi compondo peça a peça o seu negócio, vi-a a chegar sozinha tantas vezes, já a noite estava instalada, com caixas, electrodomésticos,  num esforço ruidoso que contrastava com a quietude daquelas ruas. Cruzei-me com ela a meio do segundo dia de portas abertas e anunciou-me que ia desistir. Aquela rua "só tinha velhos que passavam o dia enfiados à janela a olhar cá para baixo".  A descrição correspondia integralmente à realidade. Contudo aquilo que para ela foi um desabafo, que justificava o falhanço da sua empreitada, era para mim a ilustração perfeita dos confinantes daquela rua, dos meus vizinhos, do seu papel naquele organismo. Cada par de olhos a espreitar pelas janela. Este ano mudei-me para outra rua, a um quilómetro em linha recta daquela outra. Os meus vizinhos continuam lá, não os subtraio. Na minha nova rua, às janelas vejo imensos gatos, deitados em tronos com espaldares de sisal, onde afiam as garras enquanto me fitam com o mesmo olhar do tal galgo afegão, que era meu vizinho sem eu saber. Nesta nova casa, os felinos são a minha primeira vizinhança.

 

Caminhar em bicos dos pés sobre minas terrestres

Janeiro 09, 2020

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"Estou a escrever estas palavras, porque não confio no tempo. Eu, Harriet Burden, também apelidada de Harry pelos amigos mais antigos e uns quantos novos amigos seletos, tenho sessenta e dois anos, portanto não sou propriamente um dinossauro, mas estou mais do que a caminho do Fim, e ainda me resta muito a fazer antes que se descubra que, afinal, uma das minhas dores é um tumor, ou que o não me lembrar de uma palavra é um principio de demência, ou antes que um camião desgovernado galgue o passeio e me esborrache contra a parede, deixando-me sem ar para todo o sempre. A vida é caminhar em bicos dos pés sobre minas terrestres. Nunca sabemos o que temos pela frente e, se querem a minha opinião, também não dominamos o que deixámos para trás. Mas uma coisa que sabemos fazer muito bem é contar a versão que melhor nos convém e dar cabo da cabeça a tentar que bata certo."

(O Mundo Ardente, Siri Hustvedt, 2014)
 

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