- O que são aquelas tendas?
Atravessávamos todos os dias aquele viaduto sobre os carris que permitem o leva e traz à estação de Santa Apolónia. Continuamos a atravessá-lo todos os dias, mas isto aconteceu há uns anos, quando a Salomé trocou de cadeira no carro e passou a estar menos enterrada no seu lugar. Os olhos dela passaram a inventariar outras coisas para além do céu azul, das nuvens, do céu azul com nuvens, do céu cinzento de nuvens, dos pingos de chuva a baterem no vidro, dos postes de iluminação em fila uns atrás dos outros.
- O que são aquelas tendas, pai?
Atravessámos tantas vezes aquele viaduto. Não havia como escapar-lhe no caminho de casa para a creche e da creche para casa. Aquelas tendas sempre estiveram lá, camufladas entre pilares grossos, uma terra de ninguém sobrelotada, a sombra da sombra da sombra da cidade em marcha. Expliquei-lhe que havia quem dormisse ali, por não ter casa. Aguardei mais perguntas, mas elas surgiram apenas alguns dias mais tarde. Em vez disso, enquanto avançávamos naquele dia, a Salomé fixou o olhar nas tendas verdes a partir do seu recém-estreado miradouro no banco de trás do carro. Na altura pensei: ganhar consciência é sair do ovo para a cadeira.
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Quando era miúdo e vinha a Lisboa visitar a minha avó aos fins-de-semana, passava sempre por um café de bairro (que obviamente já não existe, porque isto aconteceu num tempo em que qualquer loja de bairro não precisava de ter a palavra bairro escrita à frente do nome para que o identificássemos como tal). Mesmo à porta desse café, alguém tinha colado uma moeda no chão de calçada portuguesa, bem posicionada para que os residentes habituais da esplanada pudessem assistir em primeira mão à emboscada. As pessoas caminhavam distraídas pela Rua D. Estefânia, aquelas que iam de olhos no chão, e estacavam mesmo ali à frente. Baixavam-se como quem não quer a coisa e tentavam apanhar a moeda, às vezes demorando a entender que ela nunca iria sair dali. Muitas vezes, nem reparavam nos risos dos clientes habituais do café, sentados na esplanada como se estivessem na primeira fila de um espectáculo. Quando reparavam, já era demasiado tarde. Tinham sido apanhados e aí o público perdia a vergonha e ria sem pruridos. Também eu fui apanhado. Também acreditei que andar de olhos pregados no chão me iria valer uma moeda de duzentos escudos. Também eu levei calduços na escola por caminhar de cabeça baixa, olhos perdidos no chão - ou talvez fosse de cabeça baixa precisamente por saber que iria apanhá-los e talvez se não os visse a sensação de dor fosse menos evidente. Na altura pensei: olhar para baixo é uma cilada.
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Há uns meses, a Salomé pediu-nos para ir andar de trotineta "naquele sítio com círculos, rectângulos e quadrados". Tentámos responder ao pedido, lançámos várias hipóteses sem sucesso. Falávamos de parques, mas ela respondia-nos com um sítio de chão rosa e com o dedo desenhava no ar as formas geométricas que lá havia. Após algumas tentativas, desistimos e seguimos para o Campo das Cebolas, porque era amplo e já não íamos lá há algum tempo. Quando chegámos, olhei para o chão. Foi isto que vimos:
Ali estava o chão rosado, com círculos, rectângulos e até semi-círculos de vários tamanhos, que ficou gravado na memória da Salomé embora não na minha. Provavelmente porque comecei a resistir a prender o meu olhar no chão, por estar preso aquele juízo que dá por certo que quem olha para baixo são os tolos, os desalentados, o Charlie Brown. Na altura pensei: olhar para baixo pode ser bom, no fim de contas, para ver onde ponho os pés, por exemplo.