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Longitudinal

Resposta sem altura

Agosto 23, 2022

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(The Birthday Party, John Singer Sargent, 1887)

 

As crianças fazem muitas perguntas, mesmo para além da idade dos porquês, nesse horizonte imenso em que temos de lhes explicar não só a causa das coisas, mas o esqueleto das coisas, o frente e verso das coisas, a costura das coisas, as coisas que não são coisas, a ter de justificar os sins e os nãos, nem sempre o talvez. Todas as perguntas merecem resposta, ainda que por vezes nos apeteça deixar essa resposta pendurada e apenas acabemos por replicar alguma coisa, enfastiados. Complicado é, no entanto, quando as respostas não estão à altura das perguntas.
 
Há um par de meses, o teatro onde trabalho fez anos. Na manhã do dia de aniversário, a minha filha mais velha perguntou-me: "Vão construir coisas?". Devolvi-lhe outra pergunta, por que razão iríamos ocupar um dia de festa com obras? Esclareceu-me prontamente. Não seriam umas obras quaisquer. A Salomé queria saber se íamos construir mais um piso, em baixo ou em cima pouco interessava. Seriam as obras necessárias para o teatro crescer. Não é isso que acontece connosco à medida que somamos mais anos? E se os edifícios não crescem sozinhos, talvez tenhamos de ser nós a ajudá-los nessa tarefa. Não faz sentido - sob este ponto de vista, um arranha-céus seria o mais ancião dos edifícios e uma vivenda térrea um imóvel eternamente jovem -, mas é uma pergunta que escancara as portas da cabeça de quem a fez e que areja as nossas pelo caminho. Não encontrei resposta à altura, senão sorrir antes de saírmos de casa nessa manhã.
 
É uma pergunta curiosa, partindo dela. Afinal, a Salomé nem dá conta de que as suas pernas crescem de dia para dia. Não relaciona os trambolhões que dá com as nódoas negras que vão aparecendo nessas pernas esguias em obstinada expansão. No entanto, reconhece esse crescimento nos outros, até num edifício que tem pouco espaço para aumentar. A Salomé consegue espantar-se quando os sapatos deixam de lhe caber nos pés, quando aquele par de ténis, o preferido, começa a torcer-lhe os dedos. Não reconhece que é inevitável. Todavia a Salomé segue, a crescer sem dar por isso, rumo àquele instante em que, também sem nos apercebermos, o corpo decide parar de se esticar, e a partir do qual só nos resta desejar que as respostas estejam à altura da nossa altura e que consigamos evitar que o mundo nos pareça mais e mais pequeno. Nessa estação sempre-viva, as respostas passam a suscitar um medo maior e mais persistente do que as próprias perguntas.
 
"As pessoas são infinitas?", perguntou-me a Salomé há poucas semanas. Não queria saber se somos eternos, nada disso. Queria saber se estão sempre a irromper pessoas novas no mundo para compensar aquelas que nos deixam. Uma vez mais, não encontrei uma resposta certa. Todas se apequenaram, medrosas.
 

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