Um bidé
Agosto 26, 2023
No meu bairro, até há algum tempo, as lojas desocupadas nos rés-do-chão de vários prédios eram testemunhas silenciosas de uma outra era. Vestígios imóveis de um bairro que enlaçava os habitantes nas suas fronteiras, sabendo que estas lojas - agora encerradas, vazias por anos - bastavam para amparar o quotidiano de quem lá morava. Quando me mudei para aqui, restavam algumas lojas abertas, lado a lado com outros tantos espectros, como aquela engomadoria que já não engoma, mas que continua a anunciá-lo a quem passa. Um dia, um pequeno espaço onde se consertavam máquinas de costura fechou também. Meses depois, o interior da loja foi enfaixado, autêntica múmia, em panos brancos. Dias depois, havia quem lá morasse - replicando o que aconteceu noutras lojas de outras ruas próximas, que passaram a apartamentos habitados. A máquina de costura que esteve anos na discreta montra rectangular foi substituída por um bidé. Embora quase todas as manhãs me tenha cruzado com esse objeto, recordo-me do instante mágico em que me apercebi que além de flores, crescia ali um singelo tomateiro. A partir daí, as plantas foram definhando, mirrando até sucumbirem por fim à inevitabilidade do acaso. Nessa altura já ninguém morava ali. A loja que foi casa está vazia - apenas por enquanto. No meu bairro, nos últimos tempos, as lojas desocupadas nos rés-do-chão de vários prédios são agora testemunhas discretas de uma cidade onde se inventam soluções duvidosas de habitação. Sim. A beleza de uma planta que cresce num bidé é espantosa, mas não passa de um assombro fugaz.
Esta fotografia faz parte da exposição colectiva "Casa", integrada na MFA - Mostra de Fotografia de Arroios, que pode ser visitada gratuitamente no Largo Residências - Quartel do Largo do Cabeço de Bola, em Lisboa, de 30 de Agosto a 15 de Setembro.