Havia, há um dia
Setembro 24, 2024
Havia, há um dia, quem chinelasse pela carruagem do comboio, os pequeníssimos grãos de areia em debandada perna abaixo até ao piso azul salpicado de estrelas brancas de microplástico, como aquele outro lençol em constante emoção que vem ao nosso encontro junto ao areal, há bem pouco tempo havia quem transportasse até à barriga da perna o que sobrava de uma jornada plena de ócio, atirada à cara de quem passou pelas férias sem pisar um areal, nem sequer um peixe-aranha mais atrevido, e nem sentiu falta desse mergulho a seco no Verão, nem do mergulho a sério na àgua com sal e plásticos, macro ou micro, ainda há um mês havia pouco espaço na carruagem para entrar, era preciso furar pelo meio dos corpos adolescentes, colados entre si como se o sal os prendesse uns aos outros após um dia inteiro na praia, talvez apenas uma tarde, já que nesta idade basta uma tarde para gastar quase uma vida inteira, até há uma hora, parece-me agora, ainda os via adormecidos nos bancos do comboio, amontoados como despojos de uma batalha, mas das felizes, com os seus penteados todos iguais, as suas roupas idênticas, a dormir com um escaldão bem vivido, ou ainda a pingar, de pé, uma poça a crescer no meio da carruagem, a praia possível de Belém ao Cais Sodré, o Verão praticável, havia qualquer coisa de Outono nesse Verão, talvez a culpa seja do ar condicionado.