Uma torrada queimada.
O virar da última página de um livro volumoso.
Um estudante do secundário a tratar-me por senhor.
Quando concluo um percurso e me apercebo, só no final, que o fiz de forma automática.
Corto o cabelo de seis em seis meses.
Aguardo por esse momento para investigar os novos cabelos brancos.
Um minuto, bem contado, pode durar menos do que um suspiro. Pode ser ainda a medida de distância entre dois aniversários.
Todos os dias, ao chegar à escola da minha filha mais nova, dispo-lhe o casaco e penduro-o num cabide onde estão também os casacos das outras crianças. Há duas semanas, o volume de todos aqueles casacos dificultava a tarefa. Esta semana reparei que o pendurava tranquilamente, embora o número de peças de roupa se mantenha. Este gesto despertou-me mais para a mudança de estação do que qualquer notícia sobre o equinócio da Primavera. (Mais até do que olhar à minha volta, para o mundo).
Perto de minha casa, alguém desenhou um rosto azul escuro na fachada de um prédio azul claro. Um desenho simples, um traço a fazer de sorriso, dois círculos a fingir de olhos arregalados e dois pequenos pontos que garantem ao olhar uma aparência mais simpática. Passei por esse rabisco durante meses e julguei-o sempre uma coisa disparatada, embora inocente. Até o ter descoberto à noite. Era outra coisa, além de uma cara sorridente tinha um propósito. Até hoje não consegui decifrar qual, provavelmente esse mistério faz parte do plano. A sombra de um sinal de sentido proibido tornava-a uma entidade que sorria imperturbável a quem passasse por aquele cruzamento. Podíamos aguardar o dia inteiro para a encontrar, ou simplesmente marcar encontro à hora do raiar da iluminação pública. No meu caso, descobri-a num regresso do supermercado, carregando aos ombros uns sacos pesados. A partir desse momento, passei a tratar aquele rabisco como um vizinho. Mais tarde, com o passar dos meses, como um velho conhecido. A expressão serena com que nos mirava espelhava a nossa desordem interior. Podia lançar um olhar reconfortante ou compassivo, até inquisidor. Nunca senti porém que me olhasse de forma altiva. Obviamente era eu que o carregava de sentidos, não alucinei por completo. Era apenas uma cara pintada numa parede. Era mesmo? Há uns meses, houve uma intervenção mesmo em frente à fachada desse prédio azul claro, de modo a tornar a zona mais acessível para todas as pessoas. Trocaram o pavimento, rebaixaram o passeio e, para que isso acontecesse, o sinal de sentido proibido foi deslocado meio metro para o lado. Como o poste de iluminação permaneceu no mesmo lugar, a sombra que anteriormente caía sobre o rosto rabiscado deixou de o fazer. Se, por um lado, a sombra parecia agora um espectro ao abandono, por outro lado, o velho conhecido que tantas vezes cumprimentei naquela esquina, passou a ser apenas uma cara, tanto de dia como de noite. Talvez os proprietários do prédio tenham sentido o mesmo. A verdade é que, pouco tempo após as obras no passeio, o rectângulo de parede foi pintado num azul ainda mais claro do que o do edifício. A cara deixou de ali estar, mas é nela que penso sempre que ali passo. Não esquecer o que já desapareceu, e conseguir recordar essa galáxia de coisas, pessoas, sons, odores, comoções com propriedade, ainda é uma das formas mais seguras de contar o tempo que passa.