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Longitudinal

Outras formas de medir o tempo

Abril 07, 2023

 

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Uma torrada queimada.
O virar da última página de um livro volumoso. 
Um estudante do secundário a tratar-me por senhor. 
Quando concluo um percurso e me apercebo, só no final, que o fiz de forma automática.
 
Corto o cabelo de seis em seis meses.
Aguardo por esse momento para investigar os novos cabelos brancos. 
 
Um minuto, bem contado, pode durar menos do que um suspiro. Pode ser ainda a medida de distância entre dois aniversários.
 
Todos os dias, ao chegar à escola da minha filha mais nova, dispo-lhe o casaco e penduro-o num cabide onde estão também os casacos das outras crianças. Há duas semanas, o volume de todos aqueles casacos dificultava a tarefa. Esta semana reparei que o pendurava tranquilamente, embora o número de peças de roupa se mantenha. Este gesto despertou-me mais para a mudança de estação do que qualquer notícia sobre o equinócio da Primavera. (Mais até do que olhar à minha volta, para o mundo). 
 
Perto de minha casa, alguém desenhou um rosto azul escuro na fachada de um prédio azul claro. Um desenho simples, um traço a fazer de sorriso, dois círculos a fingir de olhos arregalados e dois pequenos pontos que garantem ao olhar uma aparência mais simpática. Passei por esse rabisco durante meses e julguei-o sempre uma coisa disparatada, embora inocente. Até o ter descoberto à noite. Era outra coisa, além de uma cara sorridente tinha um propósito. Até hoje não consegui decifrar qual, provavelmente esse mistério faz parte do plano. A sombra de um sinal de sentido proibido tornava-a uma entidade que sorria imperturbável a quem passasse por aquele cruzamento. Podíamos aguardar o dia inteiro para a encontrar, ou simplesmente marcar encontro à hora do raiar da iluminação pública. No meu caso, descobri-a num regresso do supermercado, carregando aos ombros uns sacos pesados. A partir desse momento, passei a tratar aquele rabisco como um vizinho. Mais tarde, com o passar dos meses, como um velho conhecido. A expressão serena com que nos mirava espelhava a nossa desordem interior. Podia lançar um olhar reconfortante ou compassivo, até inquisidor. Nunca senti porém que me olhasse de forma altiva. Obviamente era eu que o carregava de sentidos, não alucinei por completo. Era apenas uma cara pintada numa parede. Era mesmo? Há uns meses, houve uma intervenção mesmo em frente à fachada desse prédio azul claro, de modo a tornar a zona mais acessível para todas as pessoas. Trocaram o pavimento, rebaixaram o passeio e, para que isso acontecesse, o sinal de sentido proibido foi deslocado meio metro para o lado. Como o poste de iluminação permaneceu no mesmo lugar, a sombra que anteriormente caía sobre o rosto rabiscado deixou de o fazer. Se, por um lado, a sombra parecia agora um espectro ao abandono, por outro lado, o velho conhecido que tantas vezes cumprimentei naquela esquina, passou a ser apenas uma cara, tanto de dia como de noite. Talvez os proprietários do prédio tenham sentido o mesmo. A verdade é que, pouco tempo após as obras no passeio, o rectângulo de parede foi pintado num azul ainda mais claro do que o do edifício. A cara deixou de ali estar, mas é nela que penso sempre que ali passo. Não esquecer o que já desapareceu, e conseguir recordar essa galáxia de coisas, pessoas, sons, odores, comoções com propriedade, ainda é uma das formas mais seguras de contar o tempo que passa.
 

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Oh!

Março 21, 2023

Sem Títuleo-1.jpg

 

Oh!

 

Antes do primeiro livro,

do primeiro parágrafo,

da primeira frase,

da primeira palavra.

 

Mas não antes

da primeira história,

da primeira voz,

do primeiro dos primeiros gritos.

 

Mesmo que esse berro tenha sido

aquele som que mais parece uma letra.

Oh!

 

O espanto é sempre

uma palavra de uma sílaba.

 

Pintar um ano novo

Janeiro 02, 2023

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Durante a suspensão do semáforo vermelho, mais longa do que a contagem decrescente que nos pega ao colo até ao novo ano, imaginei que estas três pessoas se penduravam todos os anos por esta altura para voltar a pintar um arco-íris, combinando regressar trezentos e sessenta e cinco dias depois, mais coisa menos coisa, mais tradição do que resolução de ano novo, até o semáforo mudar de cor, verde por amadurar.

 

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