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Longitudinal

Uma casa vazia

Junho 07, 2023

Sem Título-d.jpg

 

Uma cicatriz pode esconder

o episódio mais banal

e o trauma mais furtivo. 

Na pele, como no papel

que cobre as paredes de uma casa. 

 

Um prego solitário, 

a antiga fotografia de família. 

 

Uma carpete puída, 

o vestígio de uma cama sedentária. 

 

Um vinco na parede, 

a estante que o escondeu. 

 

Uma casa vazia,

um coração enxuto.

 

 

Verde-praga

Maio 29, 2023

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Lições para caminhar

de peste em peste,

de crise em crise,

desporto radical reservado

aos bravos, aos insensatos:

 

escapar a todos os alçapões

mesmo àquele que estava

mesmo ali ao lado

debaixo do nariz

ao virar da esquina

a dois passos de.

 

Sorrir em tons de verde.

Não tanto de esperança,

mas de folha que se rende à praga.

 

 

Outras formas de medir o tempo

Abril 07, 2023

 

1.jpg

Uma torrada queimada.
O virar da última página de um livro volumoso. 
Um estudante do secundário a tratar-me por senhor. 
Quando concluo um percurso e me apercebo, só no final, que o fiz de forma automática.
 
Corto o cabelo de seis em seis meses.
Aguardo por esse momento para investigar os novos cabelos brancos. 
 
Um minuto, bem contado, pode durar menos do que um suspiro. Pode ser ainda a medida de distância entre dois aniversários.
 
Todos os dias, ao chegar à escola da minha filha mais nova, dispo-lhe o casaco e penduro-o num cabide onde estão também os casacos das outras crianças. Há duas semanas, o volume de todos aqueles casacos dificultava a tarefa. Esta semana reparei que o pendurava tranquilamente, embora o número de peças de roupa se mantenha. Este gesto despertou-me mais para a mudança de estação do que qualquer notícia sobre o equinócio da Primavera. (Mais até do que olhar à minha volta, para o mundo). 
 
Perto de minha casa, alguém desenhou um rosto azul escuro na fachada de um prédio azul claro. Um desenho simples, um traço a fazer de sorriso, dois círculos a fingir de olhos arregalados e dois pequenos pontos que garantem ao olhar uma aparência mais simpática. Passei por esse rabisco durante meses e julguei-o sempre uma coisa disparatada, embora inocente. Até o ter descoberto à noite. Era outra coisa, além de uma cara sorridente tinha um propósito. Até hoje não consegui decifrar qual, provavelmente esse mistério faz parte do plano. A sombra de um sinal de sentido proibido tornava-a uma entidade que sorria imperturbável a quem passasse por aquele cruzamento. Podíamos aguardar o dia inteiro para a encontrar, ou simplesmente marcar encontro à hora do raiar da iluminação pública. No meu caso, descobri-a num regresso do supermercado, carregando aos ombros uns sacos pesados. A partir desse momento, passei a tratar aquele rabisco como um vizinho. Mais tarde, com o passar dos meses, como um velho conhecido. A expressão serena com que nos mirava espelhava a nossa desordem interior. Podia lançar um olhar reconfortante ou compassivo, até inquisidor. Nunca senti porém que me olhasse de forma altiva. Obviamente era eu que o carregava de sentidos, não alucinei por completo. Era apenas uma cara pintada numa parede. Era mesmo? Há uns meses, houve uma intervenção mesmo em frente à fachada desse prédio azul claro, de modo a tornar a zona mais acessível para todas as pessoas. Trocaram o pavimento, rebaixaram o passeio e, para que isso acontecesse, o sinal de sentido proibido foi deslocado meio metro para o lado. Como o poste de iluminação permaneceu no mesmo lugar, a sombra que anteriormente caía sobre o rosto rabiscado deixou de o fazer. Se, por um lado, a sombra parecia agora um espectro ao abandono, por outro lado, o velho conhecido que tantas vezes cumprimentei naquela esquina, passou a ser apenas uma cara, tanto de dia como de noite. Talvez os proprietários do prédio tenham sentido o mesmo. A verdade é que, pouco tempo após as obras no passeio, o rectângulo de parede foi pintado num azul ainda mais claro do que o do edifício. A cara deixou de ali estar, mas é nela que penso sempre que ali passo. Não esquecer o que já desapareceu, e conseguir recordar essa galáxia de coisas, pessoas, sons, odores, comoções com propriedade, ainda é uma das formas mais seguras de contar o tempo que passa.
 

2.jpg

 

Oh!

Março 21, 2023

Sem Títuleo-1.jpg

 

Oh!

 

Antes do primeiro livro,

do primeiro parágrafo,

da primeira frase,

da primeira palavra.

 

Mas não antes

da primeira história,

da primeira voz,

do primeiro dos primeiros gritos.

 

Mesmo que esse berro tenha sido

aquele som que mais parece uma letra.

Oh!

 

O espanto é sempre

uma palavra de uma sílaba.

 

Medonhas

Fevereiro 23, 2023

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As minhas mãos são medonhas.

 

Não sei se são medonhas

porque roo as unhas

ou se roo as unhas porque

as mãos são medonhas.

 

Em pesadelos, sonho que

devoro as unhas, os dedos

tudo, tudo até chegar ao rádio.

 

No início da pandemia

experimentei dissolvê-las

em álcool gel.

 

Resistiram.

Com chagas, medonhas e ásperas.

Começar o ano de luvas na mão

Fevereiro 16, 2023

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Comecei o ano de pé ao alto, deitado ao comprido numa marquesa, para fintar um joelho débil. Comecei o ano a esfregar lixívia contra as paredes de casa com o vigor de quem inaugura um calendário, mas de luvas na mão para escapar aquela barrela translúcida. No segundo dia de 2023, que na verdade é o primeiro porque no dia que o antecede ainda ninguém acordou, ninguém quis despertar para a novidade, ainda que seja apenas um algarismo que muda de um minuto para o outro, um dia a mais, um ano a menos; dizia eu que no segundo dia do ano, que foi o mais luminoso até agora, embora isso não signifique grande coisa porque passou apenas um mês e meio; no segundo dia do ano, bolas, limpei mofo das paredes e iniciei um novo ciclo de fisioterapia.
 
É sempre a mesma canção. Enquanto as estações frias cobrem os céus de nuvens ora negras ora límpidas, salpicam o chão e as cabeças de gotas à procura de amparo e nos enganam nos dias ímpares com dias de uma claridade que já nem julgávamos possível, os tectos de minha casa e de tantas outras são tomados por um manto de nebuloso mofo. Adormeço, que é como quem diz, fecho as pálpebras por uns segundos-minutos-horas-dias, e quando as abro de novo os tectos outrora brancos tornaram-se uma tela salpicada de negro. A partir do meu travesseiro, vejo o mofo a formar um trilho do qual não distingo o fim do início, chegando a duvidar se haverá mesmo final ou se a invasão ainda nem começou.  Naquele canto do quarto, o mais longínquo de mim, assisto já sem pasmar à metamorfose lentíssima de um outro ser vivo.
 
O tecto da clínica de fisioterapia é branco, apenas maculado por quadrados com lâmpadas tubulares. Perna para cima, a ponta do pé bem esticada. Descubro-me demasiadas vezes especado, de olhar fixo nessas luzes no vaivém de exercícios. Joelho contra o peito, na direção da anca. As paredes da clínica de fisioterapia são também brancas. Em algumas delas semearam frases motivacionais, que a pouco e pouco se convertem em recriminações veladas: "é parte da cura o desejo de ser curado", "a sua atitude no início de um tratamento definirá em muito o êxito dele". Todos os dias, termino de joelho bem puxado junto ao peito, agarrado a uns elásticos que somam resistência ao movimento e põem a nu a desolação muscular. Todavia, e embora a rádio despeje sempre à mesma hora, qual recitação do terço, uma canção de um tipo espanhol sobre as suas férias em Portugal, insisto. "A cada dia um ai, a cada ai uma conquista." 
 
Lá em baixo, a luz era diminuta. Permitia, ainda assim, fitar os joelhos do senhor à nossa frente. Um turista francês, possivelmente sexagenário, talvez septuagenário, com um tronco enorme que, não fossem as pernas esguias, poderia denunciá-lo como um sempre-em-pé. Foi há alguns anos, numa viagem à ilha do Pico, quando dei por mim numa gruta com cerca de 1500 anos. Dei por mim é mero recurso expressivo. Na verdade foi uma visita guiada com dia e hora marcados. A Gruta das Torres é, garantia o folheto, o maior tubo lávico do país, e do caminho subterrâneo que a lava abriu de jorro, calcorreei apenas quatro centenas de metros. De algumas partes do tecto pendiam estalactites, diferentes das que conhecia das grutas calcárias do continente, pequenas gotas polidas. As estalactites das grutas calcárias são um testemunho da duração, têm a assinatura dos minerais que aguardaram com pacatez a sua vez de se eternizar em rocha. Aquelas eram testemunhas de um momento em que tudo queimava, como lágrimas de Pompeia. Pingos de lava que arrefeceram enquanto mergulhavam e ali ficaram como flagrantes fotográficos. Não vão crescer até ao solo. Mais à frente, numa zona mais profunda, lá estava ele. O bolor.
 
Perdi horas a procurar mistelas milagrosas para erradicar o mofo das paredes de casa. Nos supermercados há uma extensa gama de produtos que prometem fazê-lo. No YouTube, existem centenas de vídeos que procuram explicar em detalhe o que usar, e como o usar, para alcançar resultados inacreditáveis. Água com sal. Limão. Vinagre, mas do branco, nunca do balsâmico. Bicarbonato de sódio. Lixívia. Nenhum deles. Combinar todos sem qualquer ordem. Aplicar uma camada e deixar actuar. Atacar à primeira, sem perdão. Experimentei todos, misturei técnicas. Vi o bolor a desaparecer diante dos meus olhos irritados pela emanação das soluções corrosivas. Sob a acção da lixívia, o bolor torna-se amarelado e começa a ensaiar uma saída de ilusionista, borbulhando até ao próximo truque. 
 
Na gruta da ilha do Pico, o guia era um miúdo que devia ter nascido nos Estados Unidos e vindo viver mais tarde para a ilha onde teria raízes familiares. Tinha um sotaque nova-iorquino e era nesse registo que nos avisava para termos cuidado com as paredes da gruta. O bolor que as cobria fazia parte da fauna daquele espaço, éramos nós os intrusos. Subitamente, o aviso foi cortado por um urro que ecoou pelos túneis. O turista francês tropeçara e arrastara o braço pelo bolor para se amparar, apagando séculos de vida pelo caminho. O rasto do braço ficou marcado na parede da gruta, impressão digital contra o tempo, pintura rupestre fora de época. Nesse momento sorri. Voltei a sorrir quando poucos metros à frente o homem cedeu ao desiquilíbrio e tornou a arrastar-se pelas paredes, arrebatando consigo um pedaço da História daquele espaço.
 
Nessa altura, eu nunca tinha sido obrigado a olhar o mofo olhos nos olhos. Não sabia que há bolores que parecem ter uma camada de pêlo sobre si. Encontro-os sobretudo atrás dos móveis. Antes de desaparecerem, se não tivermos cuidado, lançam-se no ar como pólen. Há também bolores muito negros, com textura de tinta acrílica. Aparecem sobretudo na casa de banho e deixam uma marca ténue na tinta da parede quando desaparecem. No fundo, é como se nunca desaparecessem. Se os deixarmos sossegados durante demasiado tempo, ganham mais personalidade. A sua marca torna-se mais perene. Por isso, limpo. Por isso, esfrego com o tal vigor inaugural. Talvez por isso insista num joelho que continua a ranger. Faço um gesto para apagar, para erradicar, para tornar alvo o que nunca foi imaculado. E, pelo caminho, deixo uma outra marca. O turista francês sou eu.

Ouro doce

Janeiro 27, 2023

 

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(Chocolate Cake, Wayne Thiebaud, 1971) 

 

Se algum dia acordar no corredor da morte

e ouvir uma voz autoritária a perguntar

sobre a minha última refeição,

bastará fechar os olhos e imaginar

a vitrina de uma pastelaria com

o seu vidro fosco

aquela luz demasiado branca

e os bolos impecavelmente alinhados.

 

Jesuítas, bons bocados, rins e babás.

Pastéis de feijão, pampilhos e éclairs.

Guardanapos, tigeladas e bolas de Berlim.

Duchesses, patas de veado e cornucópias

a transbordar de ouro doce.

 

Não sonho com um Céu repleto de nuvens.

Acredito num Paraíso com cascatas de creme de ovo.

 

 

Pintar um ano novo

Janeiro 02, 2023

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Durante a suspensão do semáforo vermelho, mais longa do que a contagem decrescente que nos pega ao colo até ao novo ano, imaginei que estas três pessoas se penduravam todos os anos por esta altura para voltar a pintar um arco-íris, combinando regressar trezentos e sessenta e cinco dias depois, mais coisa menos coisa, mais tradição do que resolução de ano novo, até o semáforo mudar de cor, verde por amadurar.

 

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