Comecei o ano de pé ao alto, deitado ao comprido numa marquesa, para fintar um joelho débil. Comecei o ano a esfregar lixívia contra as paredes de casa com o vigor de quem inaugura um calendário, mas de luvas na mão para escapar aquela barrela translúcida. No segundo dia de 2023, que na verdade é o primeiro porque no dia que o antecede ainda ninguém acordou, ninguém quis despertar para a novidade, ainda que seja apenas um algarismo que muda de um minuto para o outro, um dia a mais, um ano a menos; dizia eu que no segundo dia do ano, que foi o mais luminoso até agora, embora isso não signifique grande coisa porque passou apenas um mês e meio; no segundo dia do ano, bolas, limpei mofo das paredes e iniciei um novo ciclo de fisioterapia.
É sempre a mesma canção. Enquanto as estações frias cobrem os céus de nuvens ora negras ora límpidas, salpicam o chão e as cabeças de gotas à procura de amparo e nos enganam nos dias ímpares com dias de uma claridade que já nem julgávamos possível, os tectos de minha casa e de tantas outras são tomados por um manto de nebuloso mofo. Adormeço, que é como quem diz, fecho as pálpebras por uns segundos-minutos-horas-dias, e quando as abro de novo os tectos outrora brancos tornaram-se uma tela salpicada de negro. A partir do meu travesseiro, vejo o mofo a formar um trilho do qual não distingo o fim do início, chegando a duvidar se haverá mesmo final ou se a invasão ainda nem começou. Naquele canto do quarto, o mais longínquo de mim, assisto já sem pasmar à metamorfose lentíssima de um outro ser vivo.
O tecto da clínica de fisioterapia é branco, apenas maculado por quadrados com lâmpadas tubulares. Perna para cima, a ponta do pé bem esticada. Descubro-me demasiadas vezes especado, de olhar fixo nessas luzes no vaivém de exercícios. Joelho contra o peito, na direção da anca. As paredes da clínica de fisioterapia são também brancas. Em algumas delas semearam frases motivacionais, que a pouco e pouco se convertem em recriminações veladas: "é parte da cura o desejo de ser curado", "a sua atitude no início de um tratamento definirá em muito o êxito dele". Todos os dias, termino de joelho bem puxado junto ao peito, agarrado a uns elásticos que somam resistência ao movimento e põem a nu a desolação muscular. Todavia, e embora a rádio despeje sempre à mesma hora, qual recitação do terço, uma canção de um tipo espanhol sobre as suas férias em Portugal, insisto. "A cada dia um ai, a cada ai uma conquista."
Lá em baixo, a luz era diminuta. Permitia, ainda assim, fitar os joelhos do senhor à nossa frente. Um turista francês, possivelmente sexagenário, talvez septuagenário, com um tronco enorme que, não fossem as pernas esguias, poderia denunciá-lo como um sempre-em-pé. Foi há alguns anos, numa viagem à ilha do Pico, quando dei por mim numa gruta com cerca de 1500 anos. Dei por mim é mero recurso expressivo. Na verdade foi uma visita guiada com dia e hora marcados. A Gruta das Torres é, garantia o folheto, o maior tubo lávico do país, e do caminho subterrâneo que a lava abriu de jorro, calcorreei apenas quatro centenas de metros. De algumas partes do tecto pendiam estalactites, diferentes das que conhecia das grutas calcárias do continente, pequenas gotas polidas. As estalactites das grutas calcárias são um testemunho da duração, têm a assinatura dos minerais que aguardaram com pacatez a sua vez de se eternizar em rocha. Aquelas eram testemunhas de um momento em que tudo queimava, como lágrimas de Pompeia. Pingos de lava que arrefeceram enquanto mergulhavam e ali ficaram como flagrantes fotográficos. Não vão crescer até ao solo. Mais à frente, numa zona mais profunda, lá estava ele. O bolor.
Perdi horas a procurar mistelas milagrosas para erradicar o mofo das paredes de casa. Nos supermercados há uma extensa gama de produtos que prometem fazê-lo. No YouTube, existem centenas de vídeos que procuram explicar em detalhe o que usar, e como o usar, para alcançar resultados inacreditáveis. Água com sal. Limão. Vinagre, mas do branco, nunca do balsâmico. Bicarbonato de sódio. Lixívia. Nenhum deles. Combinar todos sem qualquer ordem. Aplicar uma camada e deixar actuar. Atacar à primeira, sem perdão. Experimentei todos, misturei técnicas. Vi o bolor a desaparecer diante dos meus olhos irritados pela emanação das soluções corrosivas. Sob a acção da lixívia, o bolor torna-se amarelado e começa a ensaiar uma saída de ilusionista, borbulhando até ao próximo truque.
Na gruta da ilha do Pico, o guia era um miúdo que devia ter nascido nos Estados Unidos e vindo viver mais tarde para a ilha onde teria raízes familiares. Tinha um sotaque nova-iorquino e era nesse registo que nos avisava para termos cuidado com as paredes da gruta. O bolor que as cobria fazia parte da fauna daquele espaço, éramos nós os intrusos. Subitamente, o aviso foi cortado por um urro que ecoou pelos túneis. O turista francês tropeçara e arrastara o braço pelo bolor para se amparar, apagando séculos de vida pelo caminho. O rasto do braço ficou marcado na parede da gruta, impressão digital contra o tempo, pintura rupestre fora de época. Nesse momento sorri. Voltei a sorrir quando poucos metros à frente o homem cedeu ao desiquilíbrio e tornou a arrastar-se pelas paredes, arrebatando consigo um pedaço da História daquele espaço.
Nessa altura, eu nunca tinha sido obrigado a olhar o mofo olhos nos olhos. Não sabia que há bolores que parecem ter uma camada de pêlo sobre si. Encontro-os sobretudo atrás dos móveis. Antes de desaparecerem, se não tivermos cuidado, lançam-se no ar como pólen. Há também bolores muito negros, com textura de tinta acrílica. Aparecem sobretudo na casa de banho e deixam uma marca ténue na tinta da parede quando desaparecem. No fundo, é como se nunca desaparecessem. Se os deixarmos sossegados durante demasiado tempo, ganham mais personalidade. A sua marca torna-se mais perene. Por isso, limpo. Por isso, esfrego com o tal vigor inaugural. Talvez por isso insista num joelho que continua a ranger. Faço um gesto para apagar, para erradicar, para tornar alvo o que nunca foi imaculado. E, pelo caminho, deixo uma outra marca. O turista francês sou eu.