Essa coisa de as noites estarem cada vez mais brancas e cada vez menos amarelas
Novembro 27, 2017
O ecrã da televisão iluminava-nos de espanto. Lembro-me bem desse espanto. Lembro-me do espanto na minha cara como se me tivesse visto ao espelho. Era igual ao espanto do primeiro homem ou da primeira mulher que ouviu um papagaio a devolver-lhe de forma estridente aquilo que tinha acabado de dizer. No ecrã um homem pegava numa moeda, colocava-a na língua, que tinha posto fora da boca de propósito, e engolia-a. Aquele era o primeiro nível de espanto. A barriga dele começava a ondular e essas vagas ventrais só terminavam quando a moeda voltava a surgir-lhe na língua, regurgitada. Ainda a recuperar da entrada no segundo nível de espanto, ele agarrava numa lâmpada e engolia-a de um trago. As ondas regressavam-lhe ao ventre e olhávamos para esses movimentos mesmerizados, até sermos interrompidos pela imagem do globo a sair intacto da boca do homem. O programa era emitido em directo, os planos não tinham cortes em momentos suspeitos, não havia como duvidar. Naquela idade era muito difícil pôr em causa a televisão como fonte de verdade. Era nessa altura que ele agarrava num peixe dourado, igual aquele que nadava às voltas no aquário da nossa sala, e fazia com ele o mesmo que há uns minutos tinha feito com a moeda e com a lâmpada. Sorvia-o, ruidosamente porque os sons eram uma peça essencial naquela encenação, e enquanto acompanhávamos o ondular da barriga, conseguíamos imaginar o peixinho dourado a nadar imperturbável pelo sistema digestivo - estômago, esófago, faringe e boca, como tinha aprendido na escola - até aparecer novamente no ecrã.
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Os dias de aniversário, e por contágio as semanas que os antecedem e sucedem, são períodos de angústia. Podemos escapar aos coros de parabéns e às felicitações bem-intencionadas, podemos até ser bem sucedidos na ilusão da passagem dos meses - encavalitados em anos - ignorando qualquer vestígio de envelhecimento que tenha irrompido da noite para o dia no nosso corpo. Mas não nos convencemos de que é só mais um dia. Não é. É mais um dia, sem substantivos redutores. O problema está precisamente na inflexão que decidimos aplicar ao enunciado. É mais um dia que nos recorda da passagem de outros trezentos e sessenta e cinco (e de trezentos e sessenta e seis em anos ainda menos afortunados). Ou de mais setecentos e trinta dias, se entrarmos na vertigem das adições. São milhares de dias e em cada um deles vamos perdendo, a pouco e pouco, o júbilo das primeiras vezes.
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Isto tem tudo a ver com essa coisa de as noites estarem cada vez mais brancas e cada vez menos amareladas, depois de terem ficado amareladas e tendencialmente menos escuras, e isto já depois de as noites aindam serem de noite. Foi já numa destas noites esbranquiçadas, arrefecidas em tons de LED, que as vi entrar no meu autocarro. Traziam nas mãos dois daqueles calendários do advento que se vendem em qualquer supermercado. Eram irmãs, ou comportavam-se como tal. Não teriam mais do que sete, oito anos. Abriam descaradas os orifícios onde se escondiam os chocolates, engoliam os dias a galope, e o Natal aproximava-se a cada dentada sem se importarem com o facto de ainda estarmos nos primeiros dias de Novembro. Lembrei-me do pasmo dos adultos quando percebem que uma criança pequena, daquelas a quem até há poucos dias chamavam de bebé, lhes desenha uma cara disforme numa folha de papel. A primeira vez que desenha um rosto, mesmo que de forma tosca, porventura involuntária. Ficamos mais surpreendidos do que eles, as crianças anteriormente conhecidas como bebés. Asseguro-vos. Um lápis ou uma caneta juntam-se a uma folha. Há uma progressão natural, que empurra as garatujas rumo a uma figuração mais precisa, que faz com que os riscos se tornem menos riscos e mais coisas. Surpreendemo-nos porque nos custa compreender como não ficam arrebatados, porque não se deixam contagiar pelo tal júbilo das primeiras vezes. E sem que pudesse dar conta disso, as irmãs já tinham engolido o dia 24 de Dezembro e, no autocarro, tínhamos todos as mãos sujas de candura e de chocolate.
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Num zapping descubro uma cara familiar, resgatada a uma qualquer concavidade imemorial. O número é o mesmo, ou assim parece, mas descubro-lhe rugas e sobretudo suor. Talvez tenha apagado este pormenor da minha memória mas o homem que engole peixes dourados sua copiosamente. Descubro que tem um nome - Stevie Starr -, uma nacionalidade - escocês -, que tem mais de cinquenta anos, que continua a engolir coisas e a devolvê-las intactas, que se intitula de "Regurgitador Profissional", que participa em programas de talentos pelo mundo - em várias produções do "Got Talent", desde o Reino Unido à Alemanha, passando pela República Checa e pelos ferozes Estados Unidos -, e que nunca ganhou nenhum deles - na melhor das hipóteses ficou em quarto lugar. Descubro que o programa em França se chama "La France a un incroyable talent". Descubro sobretudo a sudação. Aquilo de que melhor me recordava, ou pensava recordar, sobre esses tempos em que a televisão nos iluminava de espanto e de verdade, era da leveza com que ele, o Stevie Starr, aspirava moedas, lâmpadas, peixinhos dourados e os devolvia como se executar aquilo fosse trivial. Como se não fosse equivalente a ouvir pela primeira vez o nosso eco através de um papagaio. Como se ele o fizesse sem esforço - logo sem suor. Há destas coisas. Perdemos o rasto das primeiras vezes só para percebermos, quase vinte anos mais tarde, que ainda não lhe perdemos a mão.