Maria.
Dezembro 22, 2020
Quase nove anos depois de a Maria passar a morar connosco, comprámos um daqueles robôs aspiradores que prometem um chão limpo sem exigir, em troca, qualquer esforço. Os pêlos da Maria foram sempre um desafio. Sem que déssemos por isso, surgiam à nossa frente sob a forma de bolas, saltitando como se, do dia para a noite, a casa se tivesse tornado o cenário de um western. Geravam o seu próprio efeito borboleta: uma simples festa no dorso da Maria influenciava a ordem natural das coisas e, duas semanas depois, podíamos encontrar um tufo de pêlos numa peça de roupa que não saía do armário há um mês. Pêlos fortes, difíceis de despegar da roupa, dos bancos do carro, da planta do pé quando por acaso aí se enfiavam.
Oito anos e uns quantos meses depois de a Maria passar a ser da nossa família, dizia, comprámos finalmente um robô aspirador. Infelizmente agora não temos pêlos para aspirar. Nem Maria. Ganhámos um electrodoméstico, ficámos sem uma amiga. Uma amiga exigente, tanto quanto os seus pêlos, capaz de ladrar para todos os cães, de pequeno, médio ou grande porte, de ladrar para homens, crianças e sacos de plástico misteriosos à meia-luz da noite, de ladrar porque tocaram à campainha ou apenas porque sim. Que podia ela fazer senão ladrar? Nunca ladrou para este aspirador que lhe estragava os planos de inundar a casa com o seu mar de pêlos. Na verdade, os últimos tempos foram parcos em latidos. A Maria estava diferente, ainda que por vezes eu ainda conseguisse descobrir no seu focinho a mesma cadela minúscula que trouxemos para casa há tantos anos, tantas moradas, tantos passeios pelas ruas desta cidade. Mas só até ela, sorrateira, se encostar à minha cara e tentar derrubar-me com um peso que nada tinha de cachorro. Era um gesto de carinho incomparável. Nenhum outro amigo o faria daquele jeito tenso que a Maria foi ganhando com o tempo.
Retribuímos a amizade como pudemos. Com nenhum outro amigo partilhámos tanta comida. Por nenhum outro amigo dormimos de pernas encolhidas para que ocupasse o seu lugar aos pés da cama. Nenhum amigo nos viu tantos dias de pijama. A nenhum amigo tive de segurar a pata com a firmeza possível até adormecer de vez, curiosamente naquela que é a noite mais longa do ano. Parado ali no corredor, o robô aspirador nunca vai perceber a sorte que teve em poder sugar os pêlos da Maria, ainda que apenas por um par de meses. Nós conhecemos bem esse privilégio, vivemo-lo por quase nove anos, felizmente. Não vamos poder esquecer, haverá sempre um pêlo teimoso a despontar na nossa roupa.