(Still do filme Dias Perfeitos, de Wim Wenders)
Acordar com o sussurro de uma vassoura, erguer o tronco, depois o resto do corpo, arrumar com preceito a roupa de cama e o colchão, pulverizar de água as plantas, lavar a cara, vestir a roupa de trabalho, sair porta fora com a calma devida, para ter tempo de olhar para o céu e sorrir, quer faça chuva ou faça sol. A rotina não é enfadonha. A rotina é um método.
Entrei numa sala de cinema no último dia dessa fuga ao quotidiano a que chamamos de férias - há uma década seria um evento costumeiro, de há uns anos para cá tem-se tornado excepcional - para ver "Dias Perfeitos", último filme de Wim Wenders. A rotina que comecei por descrever corresponde aos primeiros instantes dos dias de Hirayama, um homem que vive consigo numa pequena casa de decoração contida, limpa casas-de-banho de Tóquio com rigor e a quem ouvimos a voz pela primeira vez já o filme vai a meio. É o protagonista do filme, humano de mais para ser misantropo, recluso de menos para ser um eremita. E no entanto ele move-se silencioso pela cidade, cumprindo o seu quotidiano perene, como se de um ritual se tratasse.
"Porque é que as coisas têm de mudar?", pergunta desgostosa uma das personagens. Hirayama tudo faz para o evitar. É precisamente através da reincidência de gestos e hábitos que encontra um reconfortante sentido de novidade. As músicas que escolhe ouvir no carro, preservadas na fita de uma cassete, marcando o ritmo do início de cada dia, as copas das árvores tingidas de luz que fotografa de forma meticulosa, o olhar que lança todos os dias de manhã ao céu assim que sai de casa. Não há dois dias iguais, ainda que o exercício de os distinguir seja por vezes bem mais difícil do que aqueles passatempos que nos pedem para encontrar dez diferenças entre duas imagens.
Aprendi a não me preocupar e a amar a rotina após anos de um combate sereno contra a ideia de repetição. Continuo a aprender a consenti-la. Se a rotina é um método, a constância pode ser o seu remate, a garantia de acesso às subtilezas que ficam nos intervalos entre o que é ordinário e o que é extraordinário. O método não é infalível, tem os seus dias como tudo.
De caminho, rumo ao trabalho, passo pela estátua de Afonso Albuquerque, que continua no mesmo lugar, não tem para onde fugir. Visto daqui, rodeado de copas de árvores, a sua cor transfigura-se, de mês para mês, por vezes de dia para dia, e nem sempre reparo nesses cambiantes. Mas nesta manhã o que vejo é uma ave pousada no topo da cabeça da estátua e sorrio porque me recordo de quando, há uns meses, a minha filha me acompanhou neste trajeto dois dias seguidos. Esteve comigo também na rotina, no percurso que faço de olhos abertos, mas que poderia fazer de olhos fechados. Ao segundo dia, após ter percorrido quatro estações de metropolitano, caminhado até ao torniquete nos passos curtos a que a multidão obriga, subido as escadas rumo à plataforma do comboio, olhou para mim e disse de cara luminosa "Parece que estamos a repetir o mesmo dia". "Isso é bom?", retorqui. "É fantástico!"
(Still do filme Dias Perfeitos, de Wim Wenders)