Todos os dias observo a cicatriz que tenho na mão.
Maio 08, 2019
(Repressão policial aos protestos populares na cidade de Gwangju, Coreia do Sul, em Maio de 1980)
"Há memórias que nunca saram. Em vez de se esbaterem com a passagem do tempo, essas recordações tornam-se a única coisa que sobra quando tudo o resto se corrói. O mundo escurece, como lâmpadas elétricas, fundindo-se uma a uma. Tenho consciência de que não sou uma pessoa de confiança.
Serão os seres humanos fundamentalmente cruéis? Será a experência da crueldade a única coisa que partilhamos enquanto espécie? Não passará a dignidade a que nos agarramos de uma ilusão para disfarçarmos, perante nós mesmos, esta simples verdade: que cada um de nós pode ser reduzido a um inseto, um animal voraz, um pedaço de carne? Que ser aviltado, magoado, esquartejado... é o destino essencial da humanidade, um destino cuja inevitabilidade a História confirmou?
Uma vez, na altura da revolta, conheci um tipo que era paraquedista. Contou-me a sua história depois de ouvir a minha. Disse que tinham recebido ordens para esmagar os civis com a máxima violência possível, e os que cometeram atos particularmente brutais receberam prémios de centenas de milhares de won dos superiores. Um dos tipos da sua companhia tinha dito, «Qual é o problema? Se me dão dinheiro e me mandam espancar alguém, porque é que não hei de fazê-lo?»
Ouvi outra história de um dos pelotões do exército coreano que combateram no Vietname. Obrigaram as mulheres, as crianças e os velhos de uma aldeia inteira a irem para a casa principal e a seguir deitaram-lhe fogo. Alguns dos que receberam ordens para nos matarem fizeram-no com a memória desses outros tempos, tempos de guerra, quando perpetrar atos desse tipo lhes valera uma bela recompensa. Aconteceu em Gwangju, tal como aconteceu na ilha de Jeju, em kwantung e em Nanjing, na Bósnia e em todo o continente americano quando ainda era conhecido por Novo Mundo, com uma brutalidade tão uniforme que parece estar impressa no nosso código genético.
Nunca me esqueço de que cada pessoa que conheço pertence à raça humana. E isso inclui-o a si, professor, que está a ouvir este testemunho. Tal como me inclui a mim.
Todos os dias observo a cicatriz que tenho na mão. Este sítio onde outrora o osso esteve exposto, onde uma secreção esbranquiçada escorria de uma ferida putrefacta. Sempre que vejo uma vulgar esferográfica Monami, fico com a respiração presa na garganta. Espero que o tempo me arraste como água enlameada. Espero que a morte chegue e me limpe, me liberte da memória dessas outras mortes esquálidas que assombram os meus dias e as minhas noites.
Luto sozinho, dia após dias. Luto contra o inferno a que sobrevivi. Luto contra a realidade da minha própria humanidade. Luto contra a ideia de que a morte é a única maneira de escapar a essa realidade.
Por isto, diga-me, professor, que respostas tem para mim? O senhor, um ser humano como eu."
(Atos Humanos, Han Kang, 2014)