As vozes das coisas sem boca
Fevereiro 19, 2021
Há uns meses um portão falou comigo. Foi um sussurro, não o ouvi à primeira. Ninguém está à espera de que um portão lhe diga qualquer coisa, e sobretudo que seja a murmurar. Os portões costumam anunciar-se com estrondo. Reparei nele com alguma demora, depois de passar tantas vezes por aquela rua, a de Santo António dos Capuchos, a caminho do trabalho, descendo em direcção à Avenida da Liberdade, ou suando no regresso a casa, subindo pelo Campo dos Mártires da Pátria. Se passarem por ele provavelmente não darão por ele, mesmo que saiam de casa com esse propósito. Apenas o ouvi depois de não ter mais nada para escutar.
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Há um ano, acordámos pouco preparados para o silêncio. Na verdade, estávamos (mais do que) habituados ao ruído. Portanto o alerta chegou assim, à boleia de notícias barulhentas, como se os ecrãs das televisões, dos telemóveis e dos computadores fossem megafones. Durante algum tempo foi o que prevaleceu. Depois disso, por causa disso, apesar disso, ficámos algum tempo em silêncio sem ninguém nos ter mandado calar. Sem que ninguém nos mandasse. É verdade que falámos bastante - também participei em inúmeras videochamadas -, mas nesses primeiros meses consegui distinguir o silêncio como em poucos outros momentos da minha vida. Com espessura, quase palpável. O suficiente para passar a inventariar silêncios inesperados.
Recordo-me de ter saído de casa pela manhã, num desses dias de Março do ano passado, e de ter dado pela falta de uma imagem que já tinha como certa. Todos os dias, excepto naqueles em que a chuva não desse tréguas, a senhora que vive no rés-do-chão do prédio em frente abria as janelas de par em par e ali deixava as almofadas onde repousara durante a noite, debruçadas para a rua. Nunca temeu roubos ou transeuntes atrevidos que se atrevessem a dormitar à sua janela, mas a partir daquela manhã de março, nem as almofadas arejaram, nem as janelas se abriram. Durante longos meses, encarei esse silêncio todas as manhãs a partir da minha janela. Aquele par de almofadas sufocou dentro de um quarto durante meses e aquilo que disseram, estando ausentes, foi mais vigoroso do que os “olás” que me haviam dito quando ainda podiam apanhar ar.
O silêncio desenterrara vozes que já existiam, mas às quais não dedicara qualquer atenção até aquela altura. Umas semanas depois, lembro-me de ser interpelado por uma sucessão de outdoors na beira de uma estrada. O primeiro dizia “Anuncie aqui”. O segundo, uma dezena de metros à frente, já suspirava “Este espaço pode ser seu…”. Até que por fim, outra dezena de metros adiante, uma tela em branco se remetia ao silêncio nos seus dez metros por três. Um painel esbranquiçado como metáfora de um horizonte débil para o qual vamos avançando. Recordo também os murmúrios que se alastram a partir dos parques infantis vedados. Mesmo sendo um pai que aprendeu a odiar estes espaços, é impossível abafar os lamentos dos escorregas e baloiços enfaixados e solitários.
Reconheço que é difícil admitir que escutamos as vozes destas coisas sem boca, logo agora que a saúde mental colectiva se encontra tão periclitante. No entanto não precisa de ser complicado. Um dia destes, sentada na sanita, a minha filha imitou o barulho de água a correr e no final disse-me que “estava a fazer a voz do chichi”. É simples, portanto. Tão simples quanto ter entrado num prédio de um familiar e me ter surpreendido com um tapete de entrada à porta de um dos vizinhos. Dizia “Welcome”, como tantos outros, mas estava virado para dentro, só o podia ler facilmente quem já estivesse dentro de casa. À sua maneira, o tapete lembrava a quem aí vivia que se teria de contentar em ficar lá dentro.
Foi também no ano passado que me dei conta que o meu telefone também falava. Haverá coisa mais silenciosa e simultaneamente tão absolutamente ruidosa do que um scroll infinito num ecrã de telemóvel? Contudo concluí isso num outro momento de silêncio, ainda que mais breve. Em abril juntei-me a uma iniciativa da Casa Fernando Pessoa chamada Leituras ao Ouvido. Consistia em ligar a desconhecidos (que se tinham inscrito ou que tinham sido inscritos por pessoas próximas) e ler-lhes um poema ou um texto curto. Sentado na minha cama, li um poema de Daniel Faria para um senhor que estava no areal ventoso da Praia da Tocha, tive de gritar “O Portugal Futuro” de Ruy Belo para que uma senhora com a audição comprometida me conseguisse ouvir. “No dia em que não ouço um poema pelo telemóvel fico com pena”, disseram-me. E ainda que soubéssemos que existiam pessoas nas duas pontas desta chamada, não deixávamos de ser desconhecidos e o telefone era afinal o portador daquelas vozes. Havia um poema em particular que instaurava, mais do que os outros, um compasso de silêncio. Começava assim “Estivemos um mês inteiro à janela/com os cotovelos apoiados, a contemplar aquele pedaço de terra/rodeado de sebes. E chegou o Verão”. As palavras ressoariam de outra forma em Abril do ano passado, é certo. “Agora vamos em passeio pelas estradas vazias da aldeia/sem falar e sem olhar um para o outro/como se não fôssemos nós próprios.” Conseguem imaginar ouvir isto na incerteza de Abril? “As estradas, que calafetadas com pedras/novas faziam escorregar/são agora suaves tapetes de ervas sob os nossos passos./Quando anoitece sentamo-nos no chão / e afagamos a erva das fendas, /rara, como os cabelos de uma anciã.” Silêncio. Um silêncio fundo do lado de cá e do de lá. E no entanto, o telefone segredava-me qualquer coisa reconfortante – e tenho a certeza de que o fazia também no outro lado da chamada. Descobri a voz do meu telemóvel a ler um poema de Tonino Guerra, “Canto Vigésimo Quinto”.
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Os pardais-de-coroa-branca também acordaram para esse silêncio, porém, estavam preparados. Despertaram com um despertador silencioso, que atenuou o ruído infernal da vida urbana - menos motores, menos buzinas, menos tralha, o caos a fazer-se macio. Em Abril e Maio do ano passado, quando o confinamento lhes ofereceu esta acalmia, estes pássaros mudaram o seu canto. Na Baía de São Francisco, nos Estados Unidos, os investigadores já tinham verificado nas suas observações no terreno que o pardal-de-coroa-branca tinha de gritar para ser ouvido neste barulhento ambiente urbano. Por gritar, entenda-se um canto mais estridente. Ora, assim que o ruído se atenuou, os mesmos investigadores perceberam que eles haviam mudado os seus cantos para um registo mais próximo dos seus semelhantes rurais, mais harmonioso. Na notícia que li, comparavam o canto dos pássaros canoros (como este pardal) com o dos gaios, por exemplo: “a complexa beleza de um solista de ópera bem treinado contra o som gutural de um cantor de metal”. O seu canto é fundamental: quanto mais rico, mais atractivos se tornam para as fêmeas da espécie. Um canto mais complexo, mais suave, que alcança outras distâncias e que inclui muito mais informação.
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Porque é que nos aconteceu o oposto? Porque é que a pandemia nos tornou ainda mais esganiçados? Pensei nisto pouco depois de ler a notícia sobre estes pássaros. Talvez aqueles instantes de silêncio de há um ano, prolongados por semanas e meses, tenham sido demasiado rápidos. A verdade é que não tratámos de enriquecer o discurso, continuámos a cair nas mesmas armadilhas de sempre, irremediavelmente toldados pela sobranceria, por preconceitos e pela ignorância. Amores e ódios em catadupa. Não ficou tudo bem. Enfrentamos o início de um trauma colectivo, entrecortado por polémicas quase diárias e desnecessárias e por umas eleições cuja ferida não vai sarar tão depressa, enquanto abrimos a janela todos os dias e vislumbramos o lusco-fusco que antecede uma noite de duração indeterminada. Resta-nos ser exigentes. Prestar tanta atenção ao silêncio como a quem vocifera atrocidades por dá cá aquela palha. É um exercício que tento cumprir, mas no qual falho constantemente. Procuro ouvir essas vozes dissonantes, perceber de onde vêm e para onde podem ir, mas dou por mim a ouvir portões a sussurrar.