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Longitudinal

Esticar a corda

Março 02, 2022

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No final do ano passado, juntei-me a um grupo intrépido, sensivelmente guiado pela Susana Moreira Marques, no curso "Mais próximo do mundo" da Associação Cultural Mombak. Desse processo - e tendo como ponto de partida algo que escrevi neste blogue em Agosto passado - nasceu este texto, sobre avós, esquecimento e recordações, sobre a genealogia como processo amplo e inconstante e não como propriedade estanque. Escrevi-o como se ainda fosse um miúdo de 10 anos. É portanto o gesto ingénuo de um rapaz que gostava de acreditar no poder revigorante da memória.

Podem lê-lo seguindo este link: https://www.revistapessoa.com/artigo/3438/esticar-a-corda

(Em Março, a Susana regressa com um novo curso - "Na primeira pessoa" - e as inscrições estão abertas. Avancem!)

Essa coisa de as noites estarem cada vez mais brancas e cada vez menos amarelas

Novembro 27, 2017

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O ecrã da televisão iluminava-nos de espanto. Lembro-me bem desse espanto. Lembro-me do espanto na minha cara como se me tivesse visto ao espelho. Era igual ao espanto do primeiro homem ou da primeira mulher que ouviu um papagaio a devolver-lhe de forma estridente aquilo que tinha acabado de dizer. No ecrã um homem pegava numa moeda, colocava-a na língua, que tinha posto fora da boca de propósito, e engolia-a. Aquele era o primeiro nível de espanto. A barriga dele começava a ondular e essas vagas ventrais só terminavam quando a moeda voltava a surgir-lhe na língua, regurgitada. Ainda a recuperar da entrada no segundo nível de espanto, ele agarrava numa lâmpada e engolia-a de um trago. As ondas regressavam-lhe ao ventre e olhávamos para esses movimentos mesmerizados, até sermos interrompidos pela imagem do globo a sair intacto da boca do homem. O programa era emitido em directo, os planos não tinham cortes em momentos suspeitos, não havia como duvidar. Naquela idade era muito difícil pôr em causa a televisão como fonte de verdade. Era nessa altura que ele agarrava num peixe dourado, igual aquele que nadava às voltas no aquário da nossa sala, e fazia com ele o mesmo que há uns minutos tinha feito com a moeda e com a lâmpada. Sorvia-o, ruidosamente porque os sons eram uma peça essencial naquela encenação, e enquanto acompanhávamos o ondular da barriga, conseguíamos imaginar o peixinho dourado a nadar imperturbável pelo sistema digestivo - estômago, esófago, faringe e boca, como tinha aprendido na escola - até aparecer novamente no ecrã.

 

*

 

Os dias de aniversário, e por contágio as semanas que os antecedem e sucedem, são períodos de angústia. Podemos escapar aos coros de parabéns e às felicitações bem-intencionadas, podemos até ser bem sucedidos na ilusão da passagem dos meses - encavalitados em anos - ignorando qualquer vestígio de envelhecimento que tenha irrompido da noite para o dia no nosso corpo. Mas não nos convencemos de que é só mais um dia. Não é. É mais um dia, sem substantivos redutores. O problema está precisamente na inflexão que decidimos aplicar ao enunciado. É mais um dia que nos recorda da passagem de outros trezentos e sessenta e cinco (e de trezentos e sessenta e seis em anos ainda menos afortunados). Ou de mais setecentos e trinta dias, se entrarmos na vertigem das adições. São milhares de dias e em cada um deles vamos perdendo, a pouco e pouco, o júbilo das primeiras vezes.

 

 *

 

Isto tem tudo a ver com essa coisa de as noites estarem cada vez mais brancas e cada vez menos amareladas, depois de terem ficado amareladas e tendencialmente menos escuras, e isto já depois de as noites aindam serem de noite. Foi já numa destas noites esbranquiçadas, arrefecidas em tons de LED, que as vi entrar no meu autocarro. Traziam nas mãos dois daqueles calendários do advento que se vendem em qualquer supermercado. Eram irmãs, ou comportavam-se como tal. Não teriam mais do que sete, oito anos. Abriam descaradas os orifícios onde se escondiam os chocolates, engoliam os dias a galope, e o Natal aproximava-se a cada dentada sem se importarem com o facto de ainda estarmos nos primeiros dias de Novembro. Lembrei-me do pasmo dos adultos quando percebem que uma criança pequena, daquelas a quem até há poucos dias chamavam de bebé, lhes desenha uma cara disforme numa folha de papel. A primeira vez que desenha um rosto, mesmo que de forma tosca, porventura involuntária. Ficamos mais surpreendidos do que eles, as crianças anteriormente conhecidas como bebés. Asseguro-vos. Um lápis ou uma caneta juntam-se a uma folha. Há uma progressão natural, que empurra as garatujas rumo a uma figuração mais precisa, que faz com que os riscos se tornem menos riscos e mais coisas. Surpreendemo-nos porque nos custa compreender como não ficam arrebatados, porque não se deixam contagiar pelo tal júbilo das primeiras vezes. E sem que pudesse dar conta disso, as irmãs já tinham engolido o dia 24 de Dezembro e, no autocarro, tínhamos todos as mãos sujas de candura e de chocolate.

 

 *

Num zapping descubro uma cara familiar, resgatada a uma qualquer concavidade imemorial. O número é o mesmo, ou assim parece, mas descubro-lhe rugas e sobretudo suor. Talvez tenha apagado este pormenor da minha memória mas o homem que engole peixes dourados sua copiosamente. Descubro que tem um nome - Stevie Starr -, uma nacionalidade - escocês -, que tem mais de cinquenta anos, que continua a engolir coisas e a devolvê-las intactas, que se intitula de "Regurgitador Profissional", que participa em programas de talentos pelo mundo - em várias produções do "Got Talent", desde o Reino Unido à Alemanha, passando pela República Checa e pelos ferozes Estados Unidos -, e que nunca ganhou nenhum deles - na melhor das hipóteses ficou em quarto lugar. Descubro que o programa em França se chama "La France a un incroyable talent". Descubro sobretudo a sudação. Aquilo de que melhor me recordava, ou pensava recordar, sobre esses tempos em que a televisão nos iluminava de espanto e de verdade, era da leveza com que ele, o Stevie Starr, aspirava moedas, lâmpadas, peixinhos dourados e os devolvia como se executar aquilo fosse trivial. Como se não fosse equivalente a ouvir pela primeira vez o nosso eco através de um papagaio. Como se ele o fizesse sem esforço - logo sem suor. Há destas coisas. Perdemos o rasto das primeiras vezes só para percebermos, quase vinte anos mais tarde, que ainda não lhe perdemos a mão.

 

A Suiça dentro de uma rulote

Dezembro 22, 2016

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Atrás de mim, uma paisagem suiça. Ou pelo menos aquilo que eu tinha como imagem mental da Suiça, moldada toscamente a partir do vi à minha frente um par de anos antes e daquilo que os familiares emigrados nos contavam quando apareciam, carregados com tabletes de chocolate, abraços e horas de viagem de carro às costas. A Suiça era um prado com uma montanha ao fundo. Uma vaca aqui e ali. Sem sinais de carros. Na Suiça as pessoas andavam, supunha. Lá ao fundo, uma montanha de cume branco, com neve de sorvete, e a passar rente à montanha aparecia um teleférico, que fugia à normalidade como uma indiscrição do Homem. Mas aquilo era a Suiça e talvez as vacas também andassem de teleférico. Eu não queria saber. Sabia que alguns primos viviam lá mas fazia sentido que não aparecessem neste retrato - nesta imagem da Suiça não cabiam suiços nem suiços emprestados. E atrás de mim, volto ao início, estava um prado amplo, ao fundo do qual irrompia a tal montanha de cume muito branco, duas vacas pasmadas com aquele relvado interminável e estrategicamente colocadas no canto inferior esquerdo do cenário. Aquilo era a Suiça. Mesmo que o tempo tivesse confiado aquela lona um tom amarelado, revelando uma alma outonal que eu reconhecia mais da minha própria rua. A Suiça era assim e eu estava a posar para uma fotografia como se fosse um menino suiço de seis anos. Lá fora, no exterior da rulote que parava à porta da escola, a Suiça era uma fileira de árvores altas, gigantes, um muro bem rente à nossa escola, uma casa arruinada mastigada pelas ervas e o Centro Paroquial, muito quieto, muito vazio, à espreita num canto. Fora da roulote era um miúdo português de seis anos.

 

Lembrei-me destes dias, que se repetiam, como as estações - com a tal rulote, que talvez fosse apenas uma carrinha, a chegar à nossa escola primária na data anunciada - porque recebi esta semana as primeiras fotografias de escola da minha filha. Está sentada num cenário colorido, rodeada daquelas peças e estruturas de espuma com que as creches e os jardins se recheiam para garantir que as crianças, nos seus desiquilíbrios de quem ainda mal aprendeu para que servem mesmo os pés, não se magoem. Aos pés, umas bolas coloridas. Não está a sorrir. 

 

Tenho a certeza de que se pegasse agora numa dessas fotografias tiradas à frente de uma paisagem falsa de uma Suiça de lona, eu estaria a sorrir. Era a isso que estava obrigado a partir do momento em que a professora avisava os meus pais de que num qualquer dia do próximo mês o fotógrafo ambulante ia passar pela escola. Era um dos eventos que talhava o nosso ano. Num nível equivalente recordo apenas a visita de uma trupe reduzida (marido baixinho e quase careca, mulher alta e de farta cabeleira loura, casal de caniches com um pêlo mais do que branco) que nos apresentava, também anualmente, um espectáculo de magia e variedades. O dia excepcional chegava. Começávamos por ser fotografados um a um. Sorriso aberto, exagerado, com a desfaçatez dos que sabem ter um sorriso com um ou vários dentes em falta. A Suiça sempre lá atrás. Depois juntávamo-nos uns aos outros para uma fotografia de grupo - sem suspeitar que, anos mais tarde, essa imagem ressuscitaria algures numa página de Facebook para nos recordar os nomes daqueles outros miúdos ao nosso lado. Uma estalada em forma de cápsula do tempo. Aprumados, asseados, compostos. Todos sorríamos o melhor que podíamos. 

 

A minha filha, no retrato em que congela os seus nove meses, não está a chorar. Mas também não está a sorrir. A boca está a inventar uma expressão que raramente lhe vimos. Parece surpreendida. Está aprumada e composta. Mas natural. O 'dia da fotografia' ainda não faz parte do livro de conceitos dela. E mesmo quando fizer, talvez seja apenas mais um dia. Muito provavelmente não vai recordá-lo desta forma. Com minutos de vida já conhecia a lente da câmara de um smartphone. Não vai conhecer a Suiça através de uma lona, porque já ninguém parece apreciar os benefícios medicinais de um cenário de fotógrafo. Dentro da rulote, quando me pediam para sorrir, inspirava e quase que conseguia sentir o cheiro daquele prado suiço.

 

 

Rua Garrett (pelas 17 horas)

Dezembro 21, 2009

 

Não há nenhum momento que nos pertença exclusivamente. Alguém já o viveu ou alguém o vai viver. E isto tudo muitas e muitas vezes. Há uns dias estava a descer a Rua Garrett e um miúdo à minha frente viveu exactamente o mesmo momento que eu vivi quando tinha mais ou menos a idade dele (e que muitos outros miúdos viveram também, claro). Estava a andar pela rua com o meu pai ao lado quando vi, ao longe, um homem estátua. Olhei-o, mais com medo do que com curiosidade (ou então a curiosidade também tem alguma coisa de cagarolas e passa tudo pelo mesmo). O meu pai entregou-me uma moeda e acompanhou-me até eu a deixar cair no caixote onde já estavam outras tantas. Ao barulho do metal ele respondeu inclinando-se para mim e sorrindo. Não deixei de ter medo mas o resto do dia fiquei a pensar naquilo. O miúdo viveu o mesmo, tenho a certeza. E eu acompanhei-o em silêncio.

 

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