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Longitudinal

Uma partida

Dezembro 07, 2023

Uma asa espalmada numa largueza de voo rasante, um crânio exposto em despudorada nitidez, entranhas desordenadas servidas em bufete.

Da anatomia dos pombos sei apenas o que vejo no asfalto.

 

No céu do meu quarto, há uma mancha de humidade em forma de pássaro. 

Mas hoje, o que vejo quando acordo e espreito pela janela é um pombo de peito para cima, apontado às nuvens.

O pássaro sorri, no eterno repouso trocista a que os defuntos se dedicam, como quem se prepara para pregar uma partida. 

Portanto não dorme, está morto. Mas sorri, está morto.

 

Assim que lhe virar as costas, o pombo abrirá um olho para verificar se ninguém o vigia. Rebolará para um dos lados e, por fim, voltará a voar. 

Isto se a morte fosse uma partida e não a partida.

 

Mastigo o pequeno-almoço de olhos presos naquele corpo cinza.

Temo que o pombo ali fique, a aprodrecer à minha frente, reclamando a sua desaparição por um qualquer necrófago.

Ou então que se mantenha por ali em troça, animal empalhado sem sala de estar para repousar.

Não é troféu, nem ave de estimação.

 

Vejo-o de novo enquanto me visto.

Mantenho-o sob o meu olhar a partir da janela da cozinha, da janela da casa de banho, da janela do quarto das minhas filhas, da janela do nosso quarto, da janela da sala, até sair pela porta.

Ou até me esquecer dele.

 

Mas, na verdade, quando regresso tento procurá-lo.

O pombo morto, estendido no telhado do prédio em frente, desapareceu.

Imaginem se a morte fosse a partida e não uma partida.

 

 

 

Um muro

Dezembro 04, 2023

 

Um longo muro que fala e se cala ao longo dos 200 metros, mais coisa menos coisa, que temos de percorrer a seu lado. Deixa-me sempre a cismar nos nomes e nos desenhos que o apanharam de surpresa antes de serem apagados, nas mensagens que foram rapidamente soterradas por uma tinta que nunca é igual à anterior. Há um rasto inesperado a cada passo, um padrão de geometrias variáveis, cores e bolores, que tornam o muro mais espalhafatoso do que se estivesse coberto de grafíti. Camada sob camada. Ou será camada sobre camada?

 

 

Um bidé

Agosto 26, 2023

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No meu bairro, até há algum tempo, as lojas desocupadas nos rés-do-chão de vários prédios eram testemunhas silenciosas de uma outra era. Vestígios imóveis de um bairro que enlaçava os habitantes nas suas fronteiras, sabendo que estas lojas - agora encerradas, vazias por anos - bastavam para amparar o quotidiano de quem lá morava. Quando me mudei para aqui, restavam algumas lojas abertas, lado a lado com outros tantos espectros, como aquela engomadoria que já não engoma, mas que continua a anunciá-lo a quem passa. Um dia, um pequeno espaço onde se consertavam máquinas de costura fechou também. Meses depois, o interior da loja foi enfaixado, autêntica múmia, em panos brancos. Dias depois, havia quem lá morasse - replicando o que aconteceu noutras lojas de outras ruas próximas, que passaram a apartamentos habitados. A máquina de costura que esteve anos na discreta montra rectangular foi substituída por um bidé. Embora quase todas as manhãs me tenha cruzado com esse objeto, recordo-me do instante mágico em que me apercebi que além de flores, crescia ali um singelo tomateiro. A partir daí, as plantas foram definhando, mirrando até sucumbirem por fim à inevitabilidade do acaso. Nessa altura já ninguém morava ali. A loja que foi casa está vazia - apenas por enquanto. No meu bairro, nos últimos tempos, as lojas desocupadas nos rés-do-chão de vários prédios são agora testemunhas discretas de uma cidade onde se inventam soluções duvidosas de habitação. Sim. A beleza de uma planta que cresce num bidé é espantosa, mas não passa de um assombro fugaz.

 

Esta fotografia faz parte da exposição colectiva "Casa", integrada na MFA - Mostra de Fotografia de Arroios, que pode ser visitada gratuitamente no Largo Residências - Quartel do Largo do Cabeço de Bola, em Lisboa, de 30 de Agosto a 15 de Setembro.

 

 

 

Outras formas de medir o tempo

Abril 07, 2023

 

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Uma torrada queimada.
O virar da última página de um livro volumoso. 
Um estudante do secundário a tratar-me por senhor. 
Quando concluo um percurso e me apercebo, só no final, que o fiz de forma automática.
 
Corto o cabelo de seis em seis meses.
Aguardo por esse momento para investigar os novos cabelos brancos. 
 
Um minuto, bem contado, pode durar menos do que um suspiro. Pode ser ainda a medida de distância entre dois aniversários.
 
Todos os dias, ao chegar à escola da minha filha mais nova, dispo-lhe o casaco e penduro-o num cabide onde estão também os casacos das outras crianças. Há duas semanas, o volume de todos aqueles casacos dificultava a tarefa. Esta semana reparei que o pendurava tranquilamente, embora o número de peças de roupa se mantenha. Este gesto despertou-me mais para a mudança de estação do que qualquer notícia sobre o equinócio da Primavera. (Mais até do que olhar à minha volta, para o mundo). 
 
Perto de minha casa, alguém desenhou um rosto azul escuro na fachada de um prédio azul claro. Um desenho simples, um traço a fazer de sorriso, dois círculos a fingir de olhos arregalados e dois pequenos pontos que garantem ao olhar uma aparência mais simpática. Passei por esse rabisco durante meses e julguei-o sempre uma coisa disparatada, embora inocente. Até o ter descoberto à noite. Era outra coisa, além de uma cara sorridente tinha um propósito. Até hoje não consegui decifrar qual, provavelmente esse mistério faz parte do plano. A sombra de um sinal de sentido proibido tornava-a uma entidade que sorria imperturbável a quem passasse por aquele cruzamento. Podíamos aguardar o dia inteiro para a encontrar, ou simplesmente marcar encontro à hora do raiar da iluminação pública. No meu caso, descobri-a num regresso do supermercado, carregando aos ombros uns sacos pesados. A partir desse momento, passei a tratar aquele rabisco como um vizinho. Mais tarde, com o passar dos meses, como um velho conhecido. A expressão serena com que nos mirava espelhava a nossa desordem interior. Podia lançar um olhar reconfortante ou compassivo, até inquisidor. Nunca senti porém que me olhasse de forma altiva. Obviamente era eu que o carregava de sentidos, não alucinei por completo. Era apenas uma cara pintada numa parede. Era mesmo? Há uns meses, houve uma intervenção mesmo em frente à fachada desse prédio azul claro, de modo a tornar a zona mais acessível para todas as pessoas. Trocaram o pavimento, rebaixaram o passeio e, para que isso acontecesse, o sinal de sentido proibido foi deslocado meio metro para o lado. Como o poste de iluminação permaneceu no mesmo lugar, a sombra que anteriormente caía sobre o rosto rabiscado deixou de o fazer. Se, por um lado, a sombra parecia agora um espectro ao abandono, por outro lado, o velho conhecido que tantas vezes cumprimentei naquela esquina, passou a ser apenas uma cara, tanto de dia como de noite. Talvez os proprietários do prédio tenham sentido o mesmo. A verdade é que, pouco tempo após as obras no passeio, o rectângulo de parede foi pintado num azul ainda mais claro do que o do edifício. A cara deixou de ali estar, mas é nela que penso sempre que ali passo. Não esquecer o que já desapareceu, e conseguir recordar essa galáxia de coisas, pessoas, sons, odores, comoções com propriedade, ainda é uma das formas mais seguras de contar o tempo que passa.
 

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Vamos lá ver se consigo explicar isto bem

Outubro 11, 2021

Claude_Monet_-_The_Houses_of_Parliament,_Sunset.jp

(The Houses of Parliament, Sunset, Claude Monet) 

Vamos lá ver se consigo explicar isto bem. Das traseiras da minha casa vejo prédios. De vez em quando, umas pessoas à janela, mas sobretudo prédios. Se abrir a janela da cozinha de par em par, vejo à minha esquerda a empena de um prédio que avança uns bons cinco metros para além do meu. É uma parede robusta, que reconhece a sua idade, na qual gostaria de ver desenhada alguma coisa. Se olhar em frente vejo duas filas de telhados, com telhas mais ou menos alaranjadas, mais ou menos enegrecidas, de acordo com a altura em que foram colocadas. Mais a frente, vejo três prédios mais altos, que cortam o horizonte. São eles próprios a linha do horizonte. Um é cor de rosa, o maior. Os outros dois já devem ter sido amarelos há muitos anos. Há outros prédios em frente depois desse mar triangular de telhados. Mas aquilo que me prende o olhar é o topo de um prédio mais alto, a uns bons 300 metros de distância. Dele apenas vejo uma especie de chaminé. Umas telhas pequenas, porque distantes. E ventiladores, daqueles simulacros de bola de espelhos que tornam telhados numa pista de dança vazia enquanto há Sol. No Verão, pelas 20h30, todos os prédios ao redor da minha casa descobrem-se pequenos de mais para se esticarem rumo à luz apaziguadora do final da tarde. Mas o topo desse outro prédio permanece ainda dourado durante uns minutos. Fico a olhá-lo, minuto a minuto, detido nesse eclipse vagaroso até os ventiladores perderem o seu cintilar. Faz-se noite no meu bairro.

 

Monsanto, seis e meia da manhã

Julho 28, 2021

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Aguardava o nascer do Sol. No entanto os pássaros chilreavam há muito e da cidade já se ouviam os seus ruídos habituais, aqueles que nos garantem que ela já acordou - ou melhor, que nunca chegou a adormecer. O comboio a forçar os carris na sua jornada, os motores dos carros aqui e ali. Um silvo metálico cuja origem ficou por identificar. Um avião que cortou a paisagem, precisamente no local para onde os olhos, expectantes, apontavam na esperança de ver uma nesga do nascer do Sol.

Ele aguardava o nascer do Sol. No entanto, os pássaros continuavam a embalá-lo numa espécie de canto que pressagiava qualquer coisa de inicial. Se por aqui galos houvesse, eles ja teriam cantado. É uma afirmação, nao é uma interrogação. No entanto as plantas, as árvores - as pedras também - pareciam dormir ainda. Talvez fossem como a cidade, que nunca dorme. Ou melhor, que dorme quando adormecemos, e partilha connosco noites de insónia, tal como os melhores animais de estimação o fazem.

Naquela manhã de Julho... Já seria manhã? Ou ainda era madrugada? Agora são mesmo interrogações. Naquela manhã nebulosa de Julho, ele aguardava o nascer do Sol. No entanto, a luz já era total. Talvez o Sol tivesse nascido nas suas costas, enquanto tudo o resto acordava.

 

(escrito no Miradouro do Moinho das Três Cruzes, na floresta de Monsanto, durante o encontro Caminhar e Escrever - Ao Nascer do Sol, organizado pela Escrever Escrever)

 

Ganhar consciência é sair do ovo para a cadeira?

Julho 18, 2021

- O que são aquelas tendas?

Atravessávamos todos os dias aquele viaduto sobre os carris que permitem o leva e traz à estação de Santa Apolónia. Continuamos a atravessá-lo todos os dias, mas isto aconteceu há uns anos, quando a Salomé trocou de cadeira no carro e passou a estar menos enterrada no seu lugar. Os olhos dela passaram a inventariar outras coisas para além do céu azul, das nuvens, do céu azul com nuvens, do céu cinzento de nuvens, dos pingos de chuva a baterem no vidro, dos postes de iluminação em fila uns atrás dos outros.

- O que são aquelas tendas, pai?

Atravessámos tantas vezes aquele viaduto. Não havia como escapar-lhe no caminho de casa para a creche e da creche para casa. Aquelas tendas sempre estiveram lá, camufladas entre pilares grossos, uma terra de ninguém sobrelotada, a sombra da sombra da sombra da cidade em marcha. Expliquei-lhe que havia quem dormisse ali, por não ter casa. Aguardei mais perguntas, mas elas surgiram apenas alguns dias mais tarde. Em vez disso, enquanto avançávamos naquele dia, a Salomé fixou o olhar nas tendas verdes a partir do seu recém-estreado miradouro no banco de trás do carro. Na altura pensei: ganhar consciência é sair do ovo para a cadeira.

*

Quando era miúdo e vinha a Lisboa visitar a minha avó aos fins-de-semana, passava sempre por um café de bairro (que obviamente já não existe, porque isto aconteceu num tempo em que qualquer loja de bairro não precisava de ter a palavra bairro escrita à frente do nome para que o identificássemos como tal). Mesmo à porta desse café, alguém tinha colado uma moeda no chão de calçada portuguesa, bem posicionada para que os residentes habituais da esplanada pudessem assistir em primeira mão à emboscada. As pessoas caminhavam distraídas pela Rua D. Estefânia, aquelas que iam de olhos no chão, e estacavam mesmo ali à frente. Baixavam-se como quem não quer a coisa e tentavam apanhar a moeda, às vezes demorando a entender que ela nunca iria sair dali. Muitas vezes, nem reparavam nos risos dos clientes habituais do café, sentados na esplanada como se estivessem na primeira fila de um espectáculo. Quando reparavam, já era demasiado tarde. Tinham sido apanhados e aí o público perdia a vergonha e ria sem pruridos. Também eu fui apanhado. Também acreditei que andar de olhos pregados no chão me iria valer uma moeda de duzentos escudos. Também eu levei calduços na escola por caminhar de cabeça baixa, olhos perdidos no chão - ou talvez fosse de cabeça baixa precisamente por saber que iria apanhá-los e talvez se não os visse a sensação de dor fosse menos evidente. Na altura pensei: olhar para baixo é uma cilada.

*

Há uns meses, a Salomé pediu-nos para ir andar de trotineta "naquele sítio com círculos, rectângulos e quadrados". Tentámos responder ao pedido, lançámos várias hipóteses sem sucesso. Falávamos de parques, mas ela respondia-nos com um sítio de chão rosa e com o dedo desenhava no ar as formas geométricas que lá havia. Após algumas tentativas, desistimos e seguimos para o Campo das Cebolas, porque era amplo e já não íamos lá há algum tempo. Quando chegámos, olhei para o chão. Foi isto que vimos:

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Ali estava o chão rosado, com círculos, rectângulos e até semi-círculos de vários tamanhos, que ficou gravado na memória da Salomé embora não na minha. Provavelmente porque comecei a resistir a prender o meu olhar no chão, por estar preso aquele juízo que dá por certo que quem olha para baixo são os tolos, os desalentados, o Charlie Brown. Na altura pensei: olhar para baixo pode ser bom, no fim de contas, para ver onde ponho os pés, por exemplo.

 

As vozes das coisas sem boca

Fevereiro 19, 2021

Há uns meses um portão falou comigo. Foi um sussurro, não o ouvi à primeira. Ninguém está à espera de que um portão lhe diga qualquer coisa, e sobretudo que seja a murmurar. Os portões costumam anunciar-se com estrondo. Reparei nele com alguma demora, depois de passar tantas vezes por aquela rua, a de Santo António dos Capuchos, a caminho do trabalho, descendo em direcção à Avenida da Liberdade, ou suando no regresso a casa, subindo pelo Campo dos Mártires da Pátria. Se passarem por ele provavelmente não darão por ele, mesmo que saiam de casa com esse propósito. Apenas o ouvi depois de não ter mais nada para escutar.

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*

Há um ano, acordámos pouco preparados para o silêncio. Na verdade, estávamos (mais do que) habituados ao ruído. Portanto o alerta chegou assim, à boleia de notícias barulhentas, como se os ecrãs das televisões, dos telemóveis e dos computadores fossem megafones. Durante algum tempo foi o que prevaleceu. Depois disso, por causa disso, apesar disso, ficámos algum tempo em silêncio sem ninguém nos ter mandado calar. Sem que ninguém nos mandasse. É verdade que falámos bastante - também participei em inúmeras videochamadas -, mas nesses primeiros meses consegui distinguir o silêncio como em poucos outros momentos da minha vida. Com espessura, quase palpável. O suficiente para passar a inventariar silêncios inesperados.

Recordo-me de ter saído de casa pela manhã, num desses dias de Março do ano passado, e de ter dado pela falta de uma imagem que já tinha como certa. Todos os dias, excepto naqueles em que a chuva não desse tréguas, a senhora que vive no rés-do-chão do prédio em frente abria as janelas de par em par e ali deixava as almofadas onde repousara durante a noite, debruçadas para a rua. Nunca temeu roubos ou transeuntes atrevidos que se atrevessem a dormitar à sua janela, mas a partir daquela manhã de março, nem as almofadas arejaram, nem as janelas se abriram. Durante longos meses, encarei esse silêncio todas as manhãs a partir da minha janela. Aquele par de almofadas sufocou dentro de um quarto durante meses e aquilo que disseram, estando ausentes, foi mais vigoroso do que os “olás” que me haviam dito quando ainda podiam apanhar ar.

O silêncio desenterrara vozes que já existiam, mas às quais não dedicara qualquer atenção até aquela altura. Umas semanas depois, lembro-me de ser interpelado por uma sucessão de outdoors na beira de uma estrada. O primeiro dizia “Anuncie aqui”. O segundo, uma dezena de metros à frente, já suspirava “Este espaço pode ser seu…”. Até que por fim, outra dezena de metros adiante, uma tela em branco se remetia ao silêncio nos seus dez metros por três. Um painel esbranquiçado como metáfora de um horizonte débil para o qual vamos avançando. Recordo também os murmúrios que se alastram a partir dos parques infantis vedados. Mesmo sendo um pai que aprendeu a odiar estes espaços, é impossível abafar os lamentos dos escorregas e baloiços enfaixados e solitários.

Reconheço que é difícil admitir que escutamos as vozes destas coisas sem boca, logo agora que a saúde mental colectiva se encontra tão periclitante. No entanto não precisa de ser complicado. Um dia destes, sentada na sanita, a minha filha imitou o barulho de água a correr e no final disse-me que “estava a fazer a voz do chichi”. É simples, portanto. Tão simples quanto ter entrado num prédio de um familiar e me ter surpreendido com um tapete de entrada à porta de um dos vizinhos. Dizia “Welcome”, como tantos outros, mas estava virado para dentro, só o podia ler facilmente quem já estivesse dentro de casa.  À sua maneira, o tapete lembrava a quem aí vivia que se teria de contentar em ficar lá dentro.

Foi também no ano passado que me dei conta que o meu telefone também falava. Haverá coisa mais silenciosa e simultaneamente tão absolutamente ruidosa do que um scroll infinito num ecrã de telemóvel? Contudo concluí isso num outro momento de silêncio, ainda que mais breve. Em abril juntei-me a uma iniciativa da Casa Fernando Pessoa chamada Leituras ao Ouvido. Consistia em ligar a desconhecidos (que se tinham inscrito ou que tinham sido inscritos por pessoas próximas) e ler-lhes um poema ou um texto curto. Sentado na minha cama, li um poema de Daniel Faria para um senhor que estava no areal ventoso da Praia da Tocha, tive de gritar “O Portugal Futuro” de Ruy Belo para que uma senhora com a audição comprometida me conseguisse ouvir. “No dia em que não ouço um poema pelo telemóvel fico com pena”, disseram-me. E ainda que soubéssemos que existiam pessoas nas duas pontas desta chamada, não deixávamos de ser desconhecidos e o telefone era afinal o portador daquelas vozes. Havia um poema em particular que instaurava, mais do que os outros, um compasso de silêncio. Começava assim “Estivemos um mês inteiro à janela/com os cotovelos apoiados, a contemplar aquele pedaço de terra/rodeado de sebes. E chegou o Verão”. As palavras ressoariam de outra forma em Abril do ano passado, é certo. “Agora vamos em passeio pelas estradas vazias da aldeia/sem falar e sem olhar um para o outro/como se não fôssemos nós próprios.” Conseguem imaginar ouvir isto na incerteza de Abril? “As estradas, que calafetadas com pedras/novas faziam escorregar/são agora suaves tapetes de ervas sob os nossos passos./Quando anoitece sentamo-nos no chão / e afagamos a erva das fendas, /rara, como os cabelos de uma anciã.” Silêncio. Um silêncio fundo do lado de cá e do de lá. E no entanto, o telefone segredava-me qualquer coisa reconfortante – e tenho a certeza de que o fazia também no outro lado da chamada. Descobri a voz do meu telemóvel a ler um poema de Tonino Guerra, “Canto Vigésimo Quinto”.

*

Os pardais-de-coroa-branca também acordaram para esse silêncio, porém, estavam preparados. Despertaram com um despertador silencioso, que atenuou o ruído infernal da vida urbana - menos motores, menos buzinas, menos tralha, o caos a fazer-se macio. Em Abril e Maio do ano passado, quando o confinamento lhes ofereceu esta acalmia, estes pássaros mudaram o seu canto. Na Baía de São Francisco, nos Estados Unidos, os investigadores já tinham verificado nas suas observações no terreno que o pardal-de-coroa-branca tinha de gritar para ser ouvido neste barulhento ambiente urbano. Por gritar, entenda-se um canto mais estridente. Ora, assim que o ruído se atenuou, os mesmos investigadores perceberam que eles haviam mudado os seus cantos para um registo mais próximo dos seus semelhantes rurais, mais harmonioso. Na notícia que li, comparavam o canto dos pássaros canoros (como este pardal) com o dos gaios, por exemplo: “a complexa beleza de um solista de ópera bem treinado contra o som gutural de um cantor de metal”. O seu canto é fundamental: quanto mais rico, mais atractivos se tornam para as fêmeas da espécie. Um canto mais complexo, mais suave, que alcança outras distâncias e que inclui muito mais informação.

*

Porque é que nos aconteceu o oposto? Porque é que a pandemia nos tornou ainda mais esganiçados? Pensei nisto pouco depois de ler a notícia sobre estes pássaros. Talvez aqueles instantes de silêncio de há um ano, prolongados por semanas e meses, tenham sido demasiado rápidos. A verdade é que não tratámos de enriquecer o discurso, continuámos a cair nas mesmas armadilhas de sempre, irremediavelmente toldados pela sobranceria, por preconceitos e pela ignorância. Amores e ódios em catadupa. Não ficou tudo bem. Enfrentamos o início de um trauma colectivo, entrecortado por polémicas quase diárias e desnecessárias e por umas eleições cuja ferida não vai sarar tão depressa, enquanto abrimos a janela todos os dias e vislumbramos o lusco-fusco que antecede uma noite de duração indeterminada. Resta-nos ser exigentes. Prestar tanta atenção ao silêncio como a quem vocifera atrocidades por dá cá aquela palha. É um exercício que tento cumprir, mas no qual falho constantemente. Procuro ouvir essas vozes dissonantes, perceber de onde vêm e para onde podem ir, mas dou por mim a ouvir portões a sussurrar. 

Conversas em isolamento #2

Falar pelos cotovelos

Março 31, 2020

(O sentido da votação foi unânime após a primeira conversa desta história. Mais uma vez, no final do texto deixo duas hipóteses de conversas futuras para que possam escolher aquela que preferem continuar a ler.)

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#1 - Falar para uma parede

Ao décimo dia sem sair de casa, a Lara acordou de mau humor. Os cantos da boca estavam presos ao fundo da cara e tinha uma vontade incrível de berrar. Acontece a toda a gente, é verdade, mas com ela era a primeira vez. A Lara fazia questão de acordar sempre bem-disposta. Até em dias fechados como estes. Até depois de passar uma semana inteira a ver o parque ao longe, pela janela do quarto, a inventar escorregas nas pernas dos pais. 

Logo ela que, todas as manhãs, se espantava quando via os olhos dos pais, acabados de acordar e já cansados. Abriam as pálpebras de manhã, pensava a Lara, como se já soubessem como iria ser o dia que tinham pela frente. Embora ela tivesse a certeza de que isso não era possível - à noite, a escuridão não nos deixa ver nada, muito menos o futuro. Ela já sabia o motivo. Os pais acordavam mal dispostos pela mesma razão que todos os adultos se aborrecem por ter de ver um filme de novo. Ou por ter de repetir pela décima vez uma brincadeira qualquer. Acham que já viram tudo.

Ora neste dia, a Lara acordou mal-disposta pela primeira vez na vida. Cruzou-se com a mãe e resmungou. Passou pela cadela e nem lhe disse os bons dias, como habitualmente. Nem agradeceu ao pai as torradas besuntadas de manteiga. A vontade de gritar crescia cada vez mais. Às vezes sentia-a na barriga, outras vezes parecia que subia até à garganta. Só quando a sentiu a rolar pela língua, quase a sair cá para fora, é que percebeu que tinha de fazer alguma coisa.

Muitas vezes diziam-lhe que falava pelos cotovelos. Acontecia normalmente quando chegava da escola e tinha uma longa lista de episódios para contar. As palavras saltavam para as cavalitas umas das outras. "Tem calma, Lara", diziam, "estás a falar pelos cotovelos". Mas os cotovelos dela estavam tapados pelo casaco. Era a boca dela que não conseguia esperar para contar tudo. 

Se afinal os cotovelos conseguem falar sem fazer barulho talvez a pudessem ajudar neste dia. Se eles falassem por ela, a Lara não teria de gritar. Restava descobrir como o fazer. Arregaçou as mangas do pijama e olhou para os cotovelos com uma atenção que nunca lhes tinha dado. Pareciam simpáticos mas de poucas conversas. Talvez um pouco secos. Dobrou e esticou os braços muito depressa e quase conseguiu imaginar uma boca a mexer-se na dobra dos cotovelos. Mas continuava sem escutar qualquer som. Por outro lado, dentro da boca da Lara o tal grito estava prestes a escapar. Não tinha muito tempo.

Pegou numa caneta e desenhou no cotovelo esquerdo dois olhos e um sorriso. Foi complicado mas a Lara sentiu que lhe tinha dado alguma vida. Foi até ao espelho e admirou aquele risco sorridente. Tinha ficado certinho, tal qual os sorrisos com que gostava de acordar. Sorrir bem podia ser outra maneira de falar, menos complicada, imaginou.

Entretanto ela já se tinha esquecido um pouco do mau-humor com que acordou. Já não queria falar pelos cotovelos só para não gritar. Desejava que o cotovelo falasse com ela, por mais impossível que isso fosse. Voltou a pegar na caneta, desta vez para desenhar outra cara sorridente no cotovelo direito mas o desafio de desenhar com a mão esquerda revelou-se bem mais difícil. Os olhos saíram duas bolas irritadas e a boca uma linha torta como uma centopeia. Ao olhar para os cotovelos no espelho, descobriu duas caras completamente diferentes. Um cotovelo sorria, o outro olhava desconfiado. Parecia que se conheciam.  O cotovelo direito não podia estar mais chateado. Se calhar tem razões para isso, pensou a Lara. Não percebia se o sorriso do cotovelo esquerdo era um sorriso igual aos dela ou se estava a fazer troça do outro. 

"Não te cansas de estar sempre a rir?" A Lara quase saltou de surpresa quando ouviu a pergunta. "Eu tive de ficar com esta boca torta e tu ainda sorris?". Mas desta vez a Lara percebeu que a voz grossa vinha do cotovelo direito. O cotovelo esquerdo continuava de boca fechada, sorridente. Ela também não conseguia abrir a dela. "Já sabia que não ias dizer nada. Não admira, tens mesmo cara de quem cheira mal da boca", acusou o cotovelo irritado. "Tu é que cheiras mal da boca", respondeu finalmente o outro cotovelo, embora ainda a sorrir. Era a primeira vez que a Lara assistia a uma conversa de cotovelos. Estava sem pio. "Eu mal consigo abrir a boca, como é que sabes se cheiro mal ou não?", disse um. "Se calhar não a abres porque tens os dentes podres", respondeu o outro. "E tu se calhar nem dentes tens..." Por esta altura, a Lara já tinha percebido que ia ser complicado fugir daquela situação. Para onde quer que fosse, os cotovelos iriam com ela e a discussão também. Ela ia estar no meio daquela troca de insultos.

Sem que eles se apercebessem, ela pegou num casaco e começou a vesti-lo muito devagar. Primeiro a gola, depois as duas mangas de uma vez só, para os cotovelos não darem por isso. Por trás do tecido da camisola, eles ainda continuaram a gritar durante um bom bocado. Ela sentia o algodão a tremer pelos braços acima e abaixo. Até que finalmente eles se acalmaram e ficaram apenas a resmungar, como se estivessem a fazer-lhe umas cócegas muito leves. A Lara saiu do quarto, fechou a porta com calma. Percebeu que a vontade de gritar tinha desaparecido. E então suspirou. "Como é que os adultos acham que já viram tudo?". 

 

Qual a próxima conversa da Lara?

A - Conversa de café

B- Conversa de chacha

 

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