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Longitudinal

Sorriso amarelo

Outubro 23, 2023

"Estava a sorrir porque tu pediste", disse-me. Terei pedido?

A expressão Momento Kodak era bastante popular na minha infância, um slogan infiltrado na linguagem do quotidiano para assinalar aqueles momentos que mereciam ser recordados. Agora perdi-a de vista. A marca perdeu notoriedade? Talvez. Perdeu-se sobretudo esse velho capricho de eternizar um instante numa só imagem, sabendo que, mesmo no negativo da fotografia, a felicidade é ainda e sempre positiva, por mais vezes que o revelemos. A nostalgia tem destas coisas.

Ela, a minha filha mais velha, disse-me que sorriu porque lhe pedi. Mas na verdade não lhe pedi. Pelo menos naquele momento. Naquele instante que tentei cristalizar. Apenas segurei o telemóvel ao nível dos olhos, mirando-a através de um ecrã. Agora que penso enquanto escrevo, transportando-me para o seu ponto de vista, constato que do meu rosto ela veria apenas uma boca, que provavelmente sorria. É o instinto a impor-se. O código continua a ser simples, mesmo sem Kodak. Se vou tirar uma fotografia, tenho de sorrir. Mesmo que não tenha vontade, mesmo que aquele sorriso sobreviva apenas àquele segundo de fotografia. Mesmo que seja aquele sorriso que fique para a história e não a boca sem expressão com que passamos grande parte do dia.

IMG_20231020_232956_324.png

"Sorri!", dizia-lhe quando ela era ainda mais pequena. Mais criança. No instante a seguir tinha de dizer uma palavra despropositada ou fazer uma careta, porque o primeiro sorriso que ela me entregava era tão falso, tão amarelo, tão absolutamente falsificado para imitar a sua ideia de um sorriso, que me fazia rir tanto quanto me constrangia. Imaginava-me a rever aquela imagem dez anos depois e a conjecturar uma infância de sorrisos de plástico. Tentava quebrá-lo e, na maior parte das fotografias que ainda tenho em álbuns ou pastas, é esse segundo sorriso genuíno que preferi guardar.

Creio que perdemos de vista os momentos Kodak. A felicidade em bruto, concentrada num só instante, fragmentou-se em milhares de pequenos pedaços. Dezenas de imagem em catadupa, a felicidade numa cascata de scroll. Tão em catadupa que corre o risco de banalizar. Temos fotos do momento em que nos preparamos para posar, ajeitando a roupa, ajeitando o próprio sorriso, do momento em que nos lembramos que temos de sorrir ou de quando alguém recorda que o temos de fazer, do momento do sorriso e do momento em que desmanchamos o sorriso para voltar ao normal. Um poço sem fundo. Desses tempos dos inatingíveis instantes Kodak, restam aquelas fotografias em que alguma pessoa fica de olhos fechados. Porque apesar de tudo continuamos humanos.

Porém, numa passagem acelerada pelas imagens que guardo no telemóvel, tranquiliza-me encontrar vários sorrisos genuínos das minhas filhas. E caretas e amuos e momentos em que nem se aperceberam de que estavam a ser fotografadas. Consigo até revivê-las a crescer, como se estivesse a folhear um flip book. Os dentes da Salomé a caírem, outros que nascem de seguida. A vida a romper. A vida que rasga, que veio para ficar.

Nos meus albuns de família estou sempre a sorrir. Ora com os dentes todos, ora discretamente, mas a sorrir. Quase sempre. Há uma birra em Porto Covo, uma cara de imbecil à frente da boneca Eva no Jardim Zoológico. Há também umas fotografias em que choro, já pré-adolescente - ou mesmo adolescente -, quando os meus pais queriam que almoçasse língua de vaca estufada. Mas, na maioria das fotografias, sorrio. Devo ter sorrido durante muito tempo para que esse esgar de felicidade ficasse gravado na película fotográfica. É-me impossível olhar para essas fotografias e não sorrir. Tal como quando seguimos pela rua e alguém nos mostra uma boca sorridente, sorrimos também. O mesmo acontece quando olho para uma fotografia antiga. Sorrio de volta ao passado. (Apesar disso, o comentário da minha filha inquietou-me. Quantos sorrisos amarelos se escondem nas fotografias da nossa infância? )

"Estava a sorrir porque tu pediste", disse-me a Salomé. Mas eu não tinha pedido. Não naquele instante, não naquele dia, talvez noutra ocasião de feição semelhante. Não fará parte deste ofício de ser pai ou mãe querer encontrar sorrisos nas caras que já imaginávamos com detalhe, ainda dentro da nossa cabeça, antes de terem nascido? Nem que seja para uma fotografia. Nem que seja como resposta a uma careta. Que seja espontâneo, franco, leve e duradouro. Isso basta-me.

 

Um mergulho

Abril 07, 2017

 

O iPhone tem uma maneira particular de organizar a minha vida, ou pelo menos a parte da minha vida que se traduz nas fotografias que vou tirando aqui e ali. Ele decide sozinho o que foi "o melhor das últimas duas semanas" e "o melhor do último ano". Há uns meses decidiu escolher como "o melhor da última semana" uma fotografia do meu joelho inchado e disforme depois de uma cirurgia. Não tinha sido o melhor
daquela semana. Mas há uns dias reparei no álbum "o melhor do último ano". A fotografia de capa era uma imagem do último Verão: eu, a Sara e a Salomé no final de um dia de praia. Eu e a Sara estamos a sorrir de forma exagerada, a Salomé está a fazer o mesmo mas sem querer. Tinha seis meses. Há umas semanas fez um ano.

 

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Os últimos doze meses têm sido - à falta de uma expressão melhor - meses de aprendizagem. Aprendizagem de músicas infantis, por exemplo, e uma delas acabou por soar há uns dias como uma síntese perfeita desta coisa estranha que é ser responsável e testemunha privilegiada das primeiras vezes de outra pessoa. À custa de a ouvir tantas vezes, acabei por passar demasiado tempo a pensar naquela lengalenga do elefante que estava a saltar numa teia de aranha e que como via que não caía foi chamar outro elefante. É simples: um elefante salta numa teia de aranha e acaba por chamar outro amigo elefante para saltarem ambos na mesma teia. Como aparentemente a teia os suporta sem qualquer problema, eles chamam outro elefante, e outro, e outro. Vamos aprendendo a contar e a não acreditar em impossíveis. Ficamos também recordados de que há sempre uma dose de imponderabilidade em tudo, incluindo na tarefa de ser pai, mãe, avó, avô, tio ou tia, cuidador... Escapa-nos sempre alguma coisa. Como é que dez elefantes conseguem saltar numa teia de aranha? Como é que eu me impeço de verificar de dez em dez minutos a respiração dela nos primeiros meses? A partir de que número de elefantes a teia de aranha começa a ceder? Será um dente a nascer? Ela disse pai ou disse pão? Se ela dormiu três noites sem acordar uma única vez isso quer dizer que ela vai dormir bem todas as noites a partir de agora? Será que os elefantes são imaginários? E a teia de aranha? E esta bebé, sera imaginária também?

 

Há também nesta música outra coisa: alguma inconsciência. Eles sabem que estão numa situação periclitante mas mesmo assim esticam a corda, neste caso a teia. E fazem-no alegremente. Quer se decida ser pai ou se seja pai por acaso, parece-me que há sempre um momento de apneia, como naqueles instantes precisamente antes de mergulhar. Sustém-se a respiração e arrisca-se. É só um mergulho. É só um mergulho, repito várias vezes.

 

Outro dia, a ler o Anna Karénina, deparei-me com um excerto que me fez lembrar este mergulho. Praticamente no último quarto do livro, Liovin é pai. Passou uma noite agonizante, sem saber como lidar com as dores de parto da mulher. O filho acaba por nascer, uma "criatura vermelha, estranha, com a cabeça a baloiçar e a esconder-se atrás das bordas do panal em que estava embrulhada" mas saudável e robusta. Ele olha-o pela primeira vez. O bebé, que se chamará Mitia, espirra. Tolstói escreveu: "Os seus sentimentos pela pequena criatura não eram os que tinha esperado. Não havia neles qualquer alegria, qualquer felicidade; pelo contrário, só medo, um medo novo, torturante. Era a consciência de mais uma área de vulnerabilidade. E esta consciência, nos primeiros tempos, era tão dolorosa, o medo por aquela criatura indefesa, o medo de ela sofrer era tão forte que a alegria sem sentido e até o orgulho quando a criança espirrou passaram despercebidos"

 

É só um mergulho.

 

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