Uma partida
Dezembro 07, 2023
Uma asa espalmada numa largueza de voo rasante, um crânio exposto em despudorada nitidez, entranhas desordenadas servidas em bufete.
Da anatomia dos pombos sei apenas o que vejo no asfalto.
No céu do meu quarto, há uma mancha de humidade em forma de pássaro.
Mas hoje, o que vejo quando acordo e espreito pela janela é um pombo de peito para cima, apontado às nuvens.
O pássaro sorri, no eterno repouso trocista a que os defuntos se dedicam, como quem se prepara para pregar uma partida.
Portanto não dorme, está morto. Mas sorri, está morto.
Assim que lhe virar as costas, o pombo abrirá um olho para verificar se ninguém o vigia. Rebolará para um dos lados e, por fim, voltará a voar.
Isto se a morte fosse uma partida e não a partida.
Mastigo o pequeno-almoço de olhos presos naquele corpo cinza.
Temo que o pombo ali fique, a aprodrecer à minha frente, reclamando a sua desaparição por um qualquer necrófago.
Ou então que se mantenha por ali em troça, animal empalhado sem sala de estar para repousar.
Não é troféu, nem ave de estimação.
Vejo-o de novo enquanto me visto.
Mantenho-o sob o meu olhar a partir da janela da cozinha, da janela da casa de banho, da janela do quarto das minhas filhas, da janela do nosso quarto, da janela da sala, até sair pela porta.
Ou até me esquecer dele.
Mas, na verdade, quando regresso tento procurá-lo.
O pombo morto, estendido no telhado do prédio em frente, desapareceu.
Imaginem se a morte fosse a partida e não uma partida.