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Longitudinal

Uma partida

Dezembro 07, 2023

Uma asa espalmada numa largueza de voo rasante, um crânio exposto em despudorada nitidez, entranhas desordenadas servidas em bufete.

Da anatomia dos pombos sei apenas o que vejo no asfalto.

 

No céu do meu quarto, há uma mancha de humidade em forma de pássaro. 

Mas hoje, o que vejo quando acordo e espreito pela janela é um pombo de peito para cima, apontado às nuvens.

O pássaro sorri, no eterno repouso trocista a que os defuntos se dedicam, como quem se prepara para pregar uma partida. 

Portanto não dorme, está morto. Mas sorri, está morto.

 

Assim que lhe virar as costas, o pombo abrirá um olho para verificar se ninguém o vigia. Rebolará para um dos lados e, por fim, voltará a voar. 

Isto se a morte fosse uma partida e não a partida.

 

Mastigo o pequeno-almoço de olhos presos naquele corpo cinza.

Temo que o pombo ali fique, a aprodrecer à minha frente, reclamando a sua desaparição por um qualquer necrófago.

Ou então que se mantenha por ali em troça, animal empalhado sem sala de estar para repousar.

Não é troféu, nem ave de estimação.

 

Vejo-o de novo enquanto me visto.

Mantenho-o sob o meu olhar a partir da janela da cozinha, da janela da casa de banho, da janela do quarto das minhas filhas, da janela do nosso quarto, da janela da sala, até sair pela porta.

Ou até me esquecer dele.

 

Mas, na verdade, quando regresso tento procurá-lo.

O pombo morto, estendido no telhado do prédio em frente, desapareceu.

Imaginem se a morte fosse a partida e não uma partida.

 

 

 

Cloridrato de propranolol

Outubro 31, 2023

Sem Títulosss-1.jpg

 

Todas as manhãs tomo um comprimido cor-de-rosa,

excepto nas manhãs em que me esqueço de o fazer.

 

Lendo a bula, descobri que o cloridrato de propranolol

é indicado para o controlo da angina de peito,

das arritmias cardíacas, da taquicardia por ansiedade

e do tremor essencial, que é afinal um tremor dispensável.

 

Controla também a hipertensão, razão pela qual o tomo todos os dias,

excepto nos tais dias em que me esqueço de o tomar.

 

O sangue continua a pressionar em demasia as artérias do meu corpo.

Estou vivo, excepto quando me esqueço.

 

 

 

Uma casa vazia

Junho 07, 2023

Sem Título-d.jpg

 

Uma cicatriz pode esconder

o episódio mais banal

e o trauma mais furtivo. 

Na pele, como no papel

que cobre as paredes de uma casa. 

 

Um prego solitário, 

a antiga fotografia de família. 

 

Uma carpete puída, 

o vestígio de uma cama sedentária. 

 

Um vinco na parede, 

a estante que o escondeu. 

 

Uma casa vazia,

um coração enxuto.

 

 

Verde-praga

Maio 29, 2023

IMG_20220813_192735.jpg

 

Lições para caminhar

de peste em peste,

de crise em crise,

desporto radical reservado

aos bravos, aos insensatos:

 

escapar a todos os alçapões

mesmo àquele que estava

mesmo ali ao lado

debaixo do nariz

ao virar da esquina

a dois passos de.

 

Sorrir em tons de verde.

Não tanto de esperança,

mas de folha que se rende à praga.

 

 

Oh!

Março 21, 2023

Sem Títuleo-1.jpg

 

Oh!

 

Antes do primeiro livro,

do primeiro parágrafo,

da primeira frase,

da primeira palavra.

 

Mas não antes

da primeira história,

da primeira voz,

do primeiro dos primeiros gritos.

 

Mesmo que esse berro tenha sido

aquele som que mais parece uma letra.

Oh!

 

O espanto é sempre

uma palavra de uma sílaba.

 

Medonhas

Fevereiro 23, 2023

received_141405493948808.jpeg

 

As minhas mãos são medonhas.

 

Não sei se são medonhas

porque roo as unhas

ou se roo as unhas porque

as mãos são medonhas.

 

Em pesadelos, sonho que

devoro as unhas, os dedos

tudo, tudo até chegar ao rádio.

 

No início da pandemia

experimentei dissolvê-las

em álcool gel.

 

Resistiram.

Com chagas, medonhas e ásperas.

Ouro doce

Janeiro 27, 2023

 

P07724_10.jpg

(Chocolate Cake, Wayne Thiebaud, 1971) 

 

Se algum dia acordar no corredor da morte

e ouvir uma voz autoritária a perguntar

sobre a minha última refeição,

bastará fechar os olhos e imaginar

a vitrina de uma pastelaria com

o seu vidro fosco

aquela luz demasiado branca

e os bolos impecavelmente alinhados.

 

Jesuítas, bons bocados, rins e babás.

Pastéis de feijão, pampilhos e éclairs.

Guardanapos, tigeladas e bolas de Berlim.

Duchesses, patas de veado e cornucópias

a transbordar de ouro doce.

 

Não sonho com um Céu repleto de nuvens.

Acredito num Paraíso com cascatas de creme de ovo.

 

 

Longa e breve exposição

Agosto 24, 2021

 

Foto de longa exposição

 

vinhas do mar

espuma tíbias séculos

ou o teu corpo acostado ao pino do Verão

na praia da Amoreira, por exemplo

 

água rochedo snapshot

vinhas muito do mar

 

acelero o pensamento até uma noite

de Junho influenciando o passado - altíssimo

bairro a uma segunda-feira

 

                    para depois

dormirmos numa pensão em Coimbra

cigarros à janela

vista para a Cabra

 

partamos para Sul como num slogan

o Sol a marca do biquíni um indício de mar

roubarei de novo o carro aos pais 

para ouvir outra vez o estrépito ameno do 

teu gozo

 

 

Foto de breve exposição

 

repartimos a regueifa de Pardilhó com as formigas de Odeceixe

 

(Estojo, Miguel-Manso, 2020)

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