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Longitudinal

Perfeitos, os dias.

Abril 16, 2024

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(Still do filme Dias Perfeitos, de Wim Wenders)

 

Acordar com o sussurro de uma vassoura, erguer o tronco, depois o resto do corpo, arrumar com preceito a roupa de cama e o colchão, pulverizar de água as plantas, lavar a cara, vestir a roupa de trabalho, sair porta fora com a calma devida, para ter tempo de olhar para o céu e sorrir, quer faça chuva ou faça sol. A rotina não é enfadonha. A rotina é um método.

Entrei numa sala de cinema no último dia dessa fuga ao quotidiano a que chamamos de férias - há uma década seria um evento costumeiro, de há uns anos para cá tem-se tornado excepcional - para ver "Dias Perfeitos", último filme de Wim Wenders. A rotina que comecei por descrever corresponde aos primeiros instantes dos dias de Hirayama, um homem que vive consigo numa pequena casa de decoração contida, limpa casas-de-banho de Tóquio com rigor e a quem ouvimos a voz pela primeira vez já o filme vai a meio. É o protagonista do filme, humano de mais para ser misantropo, recluso de menos para ser um eremita. E no entanto ele move-se silencioso pela cidade, cumprindo o seu quotidiano perene, como se de um ritual se tratasse.

"Porque é que as coisas têm de mudar?", pergunta desgostosa uma das personagens. Hirayama tudo faz para o evitar. É precisamente através da reincidência de gestos e hábitos que encontra um reconfortante sentido de novidade. As músicas que escolhe ouvir no carro, preservadas na fita de uma cassete, marcando o ritmo do início de cada dia, as copas das árvores tingidas de luz que fotografa de forma meticulosa, o olhar que lança todos os dias de manhã ao céu assim que sai de casa. Não há dois dias iguais, ainda que o exercício de os distinguir seja por vezes bem mais difícil do que aqueles passatempos que nos pedem para encontrar dez diferenças entre duas imagens.

Aprendi a não me preocupar e a amar a rotina após anos de um combate sereno contra a ideia de repetição. Continuo a aprender a consenti-la. Se a rotina é um método, a constância pode ser o seu remate, a garantia de acesso às subtilezas que ficam nos intervalos entre o que é ordinário e o que é extraordinário. O método não é infalível, tem os seus dias como tudo.

De caminho, rumo ao trabalho, passo pela estátua de Afonso Albuquerque, que continua no mesmo lugar, não tem para onde fugir. Visto daqui, rodeado de copas de árvores, a sua cor transfigura-se, de mês para mês, por vezes de dia para dia, e nem sempre reparo nesses cambiantes. Mas nesta manhã o que vejo é uma ave pousada no topo da cabeça da estátua e sorrio porque me recordo de quando, há uns meses, a minha filha me acompanhou neste trajeto dois dias seguidos. Esteve comigo também na rotina, no percurso que faço de olhos abertos, mas que poderia fazer de olhos fechados. Ao segundo dia, após ter percorrido quatro estações de metropolitano, caminhado até ao torniquete nos passos curtos a que a multidão obriga, subido as escadas rumo à plataforma do comboio, olhou para mim e disse de cara luminosa "Parece que estamos a repetir o mesmo dia". "Isso é bom?", retorqui. "É fantástico!"

 

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(Still do filme Dias Perfeitos, de Wim Wenders)

 

Um muro

Dezembro 04, 2023

 

Um longo muro que fala e se cala ao longo dos 200 metros, mais coisa menos coisa, que temos de percorrer a seu lado. Deixa-me sempre a cismar nos nomes e nos desenhos que o apanharam de surpresa antes de serem apagados, nas mensagens que foram rapidamente soterradas por uma tinta que nunca é igual à anterior. Há um rasto inesperado a cada passo, um padrão de geometrias variáveis, cores e bolores, que tornam o muro mais espalhafatoso do que se estivesse coberto de grafíti. Camada sob camada. Ou será camada sobre camada?

 

 

Cloridrato de propranolol

Outubro 31, 2023

Sem Títulosss-1.jpg

 

Todas as manhãs tomo um comprimido cor-de-rosa,

excepto nas manhãs em que me esqueço de o fazer.

 

Lendo a bula, descobri que o cloridrato de propranolol

é indicado para o controlo da angina de peito,

das arritmias cardíacas, da taquicardia por ansiedade

e do tremor essencial, que é afinal um tremor dispensável.

 

Controla também a hipertensão, razão pela qual o tomo todos os dias,

excepto nos tais dias em que me esqueço de o tomar.

 

O sangue continua a pressionar em demasia as artérias do meu corpo.

Estou vivo, excepto quando me esqueço.

 

 

 

Sorriso amarelo

Outubro 23, 2023

"Estava a sorrir porque tu pediste", disse-me. Terei pedido?

A expressão Momento Kodak era bastante popular na minha infância, um slogan infiltrado na linguagem do quotidiano para assinalar aqueles momentos que mereciam ser recordados. Agora perdi-a de vista. A marca perdeu notoriedade? Talvez. Perdeu-se sobretudo esse velho capricho de eternizar um instante numa só imagem, sabendo que, mesmo no negativo da fotografia, a felicidade é ainda e sempre positiva, por mais vezes que o revelemos. A nostalgia tem destas coisas.

Ela, a minha filha mais velha, disse-me que sorriu porque lhe pedi. Mas na verdade não lhe pedi. Pelo menos naquele momento. Naquele instante que tentei cristalizar. Apenas segurei o telemóvel ao nível dos olhos, mirando-a através de um ecrã. Agora que penso enquanto escrevo, transportando-me para o seu ponto de vista, constato que do meu rosto ela veria apenas uma boca, que provavelmente sorria. É o instinto a impor-se. O código continua a ser simples, mesmo sem Kodak. Se vou tirar uma fotografia, tenho de sorrir. Mesmo que não tenha vontade, mesmo que aquele sorriso sobreviva apenas àquele segundo de fotografia. Mesmo que seja aquele sorriso que fique para a história e não a boca sem expressão com que passamos grande parte do dia.

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"Sorri!", dizia-lhe quando ela era ainda mais pequena. Mais criança. No instante a seguir tinha de dizer uma palavra despropositada ou fazer uma careta, porque o primeiro sorriso que ela me entregava era tão falso, tão amarelo, tão absolutamente falsificado para imitar a sua ideia de um sorriso, que me fazia rir tanto quanto me constrangia. Imaginava-me a rever aquela imagem dez anos depois e a conjecturar uma infância de sorrisos de plástico. Tentava quebrá-lo e, na maior parte das fotografias que ainda tenho em álbuns ou pastas, é esse segundo sorriso genuíno que preferi guardar.

Creio que perdemos de vista os momentos Kodak. A felicidade em bruto, concentrada num só instante, fragmentou-se em milhares de pequenos pedaços. Dezenas de imagem em catadupa, a felicidade numa cascata de scroll. Tão em catadupa que corre o risco de banalizar. Temos fotos do momento em que nos preparamos para posar, ajeitando a roupa, ajeitando o próprio sorriso, do momento em que nos lembramos que temos de sorrir ou de quando alguém recorda que o temos de fazer, do momento do sorriso e do momento em que desmanchamos o sorriso para voltar ao normal. Um poço sem fundo. Desses tempos dos inatingíveis instantes Kodak, restam aquelas fotografias em que alguma pessoa fica de olhos fechados. Porque apesar de tudo continuamos humanos.

Porém, numa passagem acelerada pelas imagens que guardo no telemóvel, tranquiliza-me encontrar vários sorrisos genuínos das minhas filhas. E caretas e amuos e momentos em que nem se aperceberam de que estavam a ser fotografadas. Consigo até revivê-las a crescer, como se estivesse a folhear um flip book. Os dentes da Salomé a caírem, outros que nascem de seguida. A vida a romper. A vida que rasga, que veio para ficar.

Nos meus albuns de família estou sempre a sorrir. Ora com os dentes todos, ora discretamente, mas a sorrir. Quase sempre. Há uma birra em Porto Covo, uma cara de imbecil à frente da boneca Eva no Jardim Zoológico. Há também umas fotografias em que choro, já pré-adolescente - ou mesmo adolescente -, quando os meus pais queriam que almoçasse língua de vaca estufada. Mas, na maioria das fotografias, sorrio. Devo ter sorrido durante muito tempo para que esse esgar de felicidade ficasse gravado na película fotográfica. É-me impossível olhar para essas fotografias e não sorrir. Tal como quando seguimos pela rua e alguém nos mostra uma boca sorridente, sorrimos também. O mesmo acontece quando olho para uma fotografia antiga. Sorrio de volta ao passado. (Apesar disso, o comentário da minha filha inquietou-me. Quantos sorrisos amarelos se escondem nas fotografias da nossa infância? )

"Estava a sorrir porque tu pediste", disse-me a Salomé. Mas eu não tinha pedido. Não naquele instante, não naquele dia, talvez noutra ocasião de feição semelhante. Não fará parte deste ofício de ser pai ou mãe querer encontrar sorrisos nas caras que já imaginávamos com detalhe, ainda dentro da nossa cabeça, antes de terem nascido? Nem que seja para uma fotografia. Nem que seja como resposta a uma careta. Que seja espontâneo, franco, leve e duradouro. Isso basta-me.

 

Fazer um pum

Maio 19, 2023

Girl-with-Bears-Royal-Museum-of-Scotland-Edinburgh

(Girl with Bears, Wendy McMurdo, 1999)

 

A Júlia diz: "eu fiz um arroto". 
A Júlia, quase a pôr as mãos nos quatro anos, diz-me: "eu fiz um pum".
 
Ela não dá um pum, nem um arroto. Ela é a responsável pela sua existência. Faz e valoriza cada uma dessas interrupções do quotidiano como um fenómeno surpreendente. Di-lo sempre a sorrir.  Faz troça do mundo, uma ventosidade de cada vez.
 
A Júlia faz coisas. Todos os dias.
Todos os dias ocupa-se de coisas pela primeira vez, pela segunda vez, pela terceira vez, pela centésima  vez. O mundo acontece, ininterruptamente, à sua frente - embora suspeite que a Júlia acredita que o mundo, na verdade, anda atrás dela.
 
Mesmo quando as coisas não são novas - um jogo, cavalitas, um truque de magia, cócegas, tão-balalão, um filme de animação - reage com um entusiasmo primordial. Há um maravilhamento reservado a quem ainda faz os seus puns e arrotos.
 
A Júlia diz: "repete!"
A Júlia, a andar à frente do mundo, diz-me: "outra vez!"
 
De cada vez que ela anuncia mais um feito, planta em mim uma inquietação.
Não me consigo lembrar da última vez que fiz alguma coisa.
 
 

Outras formas de medir o tempo

Abril 07, 2023

 

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Uma torrada queimada.
O virar da última página de um livro volumoso. 
Um estudante do secundário a tratar-me por senhor. 
Quando concluo um percurso e me apercebo, só no final, que o fiz de forma automática.
 
Corto o cabelo de seis em seis meses.
Aguardo por esse momento para investigar os novos cabelos brancos. 
 
Um minuto, bem contado, pode durar menos do que um suspiro. Pode ser ainda a medida de distância entre dois aniversários.
 
Todos os dias, ao chegar à escola da minha filha mais nova, dispo-lhe o casaco e penduro-o num cabide onde estão também os casacos das outras crianças. Há duas semanas, o volume de todos aqueles casacos dificultava a tarefa. Esta semana reparei que o pendurava tranquilamente, embora o número de peças de roupa se mantenha. Este gesto despertou-me mais para a mudança de estação do que qualquer notícia sobre o equinócio da Primavera. (Mais até do que olhar à minha volta, para o mundo). 
 
Perto de minha casa, alguém desenhou um rosto azul escuro na fachada de um prédio azul claro. Um desenho simples, um traço a fazer de sorriso, dois círculos a fingir de olhos arregalados e dois pequenos pontos que garantem ao olhar uma aparência mais simpática. Passei por esse rabisco durante meses e julguei-o sempre uma coisa disparatada, embora inocente. Até o ter descoberto à noite. Era outra coisa, além de uma cara sorridente tinha um propósito. Até hoje não consegui decifrar qual, provavelmente esse mistério faz parte do plano. A sombra de um sinal de sentido proibido tornava-a uma entidade que sorria imperturbável a quem passasse por aquele cruzamento. Podíamos aguardar o dia inteiro para a encontrar, ou simplesmente marcar encontro à hora do raiar da iluminação pública. No meu caso, descobri-a num regresso do supermercado, carregando aos ombros uns sacos pesados. A partir desse momento, passei a tratar aquele rabisco como um vizinho. Mais tarde, com o passar dos meses, como um velho conhecido. A expressão serena com que nos mirava espelhava a nossa desordem interior. Podia lançar um olhar reconfortante ou compassivo, até inquisidor. Nunca senti porém que me olhasse de forma altiva. Obviamente era eu que o carregava de sentidos, não alucinei por completo. Era apenas uma cara pintada numa parede. Era mesmo? Há uns meses, houve uma intervenção mesmo em frente à fachada desse prédio azul claro, de modo a tornar a zona mais acessível para todas as pessoas. Trocaram o pavimento, rebaixaram o passeio e, para que isso acontecesse, o sinal de sentido proibido foi deslocado meio metro para o lado. Como o poste de iluminação permaneceu no mesmo lugar, a sombra que anteriormente caía sobre o rosto rabiscado deixou de o fazer. Se, por um lado, a sombra parecia agora um espectro ao abandono, por outro lado, o velho conhecido que tantas vezes cumprimentei naquela esquina, passou a ser apenas uma cara, tanto de dia como de noite. Talvez os proprietários do prédio tenham sentido o mesmo. A verdade é que, pouco tempo após as obras no passeio, o rectângulo de parede foi pintado num azul ainda mais claro do que o do edifício. A cara deixou de ali estar, mas é nela que penso sempre que ali passo. Não esquecer o que já desapareceu, e conseguir recordar essa galáxia de coisas, pessoas, sons, odores, comoções com propriedade, ainda é uma das formas mais seguras de contar o tempo que passa.
 

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Começar o ano de luvas na mão

Fevereiro 16, 2023

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Comecei o ano de pé ao alto, deitado ao comprido numa marquesa, para fintar um joelho débil. Comecei o ano a esfregar lixívia contra as paredes de casa com o vigor de quem inaugura um calendário, mas de luvas na mão para escapar aquela barrela translúcida. No segundo dia de 2023, que na verdade é o primeiro porque no dia que o antecede ainda ninguém acordou, ninguém quis despertar para a novidade, ainda que seja apenas um algarismo que muda de um minuto para o outro, um dia a mais, um ano a menos; dizia eu que no segundo dia do ano, que foi o mais luminoso até agora, embora isso não signifique grande coisa porque passou apenas um mês e meio; no segundo dia do ano, bolas, limpei mofo das paredes e iniciei um novo ciclo de fisioterapia.
 
É sempre a mesma canção. Enquanto as estações frias cobrem os céus de nuvens ora negras ora límpidas, salpicam o chão e as cabeças de gotas à procura de amparo e nos enganam nos dias ímpares com dias de uma claridade que já nem julgávamos possível, os tectos de minha casa e de tantas outras são tomados por um manto de nebuloso mofo. Adormeço, que é como quem diz, fecho as pálpebras por uns segundos-minutos-horas-dias, e quando as abro de novo os tectos outrora brancos tornaram-se uma tela salpicada de negro. A partir do meu travesseiro, vejo o mofo a formar um trilho do qual não distingo o fim do início, chegando a duvidar se haverá mesmo final ou se a invasão ainda nem começou.  Naquele canto do quarto, o mais longínquo de mim, assisto já sem pasmar à metamorfose lentíssima de um outro ser vivo.
 
O tecto da clínica de fisioterapia é branco, apenas maculado por quadrados com lâmpadas tubulares. Perna para cima, a ponta do pé bem esticada. Descubro-me demasiadas vezes especado, de olhar fixo nessas luzes no vaivém de exercícios. Joelho contra o peito, na direção da anca. As paredes da clínica de fisioterapia são também brancas. Em algumas delas semearam frases motivacionais, que a pouco e pouco se convertem em recriminações veladas: "é parte da cura o desejo de ser curado", "a sua atitude no início de um tratamento definirá em muito o êxito dele". Todos os dias, termino de joelho bem puxado junto ao peito, agarrado a uns elásticos que somam resistência ao movimento e põem a nu a desolação muscular. Todavia, e embora a rádio despeje sempre à mesma hora, qual recitação do terço, uma canção de um tipo espanhol sobre as suas férias em Portugal, insisto. "A cada dia um ai, a cada ai uma conquista." 
 
Lá em baixo, a luz era diminuta. Permitia, ainda assim, fitar os joelhos do senhor à nossa frente. Um turista francês, possivelmente sexagenário, talvez septuagenário, com um tronco enorme que, não fossem as pernas esguias, poderia denunciá-lo como um sempre-em-pé. Foi há alguns anos, numa viagem à ilha do Pico, quando dei por mim numa gruta com cerca de 1500 anos. Dei por mim é mero recurso expressivo. Na verdade foi uma visita guiada com dia e hora marcados. A Gruta das Torres é, garantia o folheto, o maior tubo lávico do país, e do caminho subterrâneo que a lava abriu de jorro, calcorreei apenas quatro centenas de metros. De algumas partes do tecto pendiam estalactites, diferentes das que conhecia das grutas calcárias do continente, pequenas gotas polidas. As estalactites das grutas calcárias são um testemunho da duração, têm a assinatura dos minerais que aguardaram com pacatez a sua vez de se eternizar em rocha. Aquelas eram testemunhas de um momento em que tudo queimava, como lágrimas de Pompeia. Pingos de lava que arrefeceram enquanto mergulhavam e ali ficaram como flagrantes fotográficos. Não vão crescer até ao solo. Mais à frente, numa zona mais profunda, lá estava ele. O bolor.
 
Perdi horas a procurar mistelas milagrosas para erradicar o mofo das paredes de casa. Nos supermercados há uma extensa gama de produtos que prometem fazê-lo. No YouTube, existem centenas de vídeos que procuram explicar em detalhe o que usar, e como o usar, para alcançar resultados inacreditáveis. Água com sal. Limão. Vinagre, mas do branco, nunca do balsâmico. Bicarbonato de sódio. Lixívia. Nenhum deles. Combinar todos sem qualquer ordem. Aplicar uma camada e deixar actuar. Atacar à primeira, sem perdão. Experimentei todos, misturei técnicas. Vi o bolor a desaparecer diante dos meus olhos irritados pela emanação das soluções corrosivas. Sob a acção da lixívia, o bolor torna-se amarelado e começa a ensaiar uma saída de ilusionista, borbulhando até ao próximo truque. 
 
Na gruta da ilha do Pico, o guia era um miúdo que devia ter nascido nos Estados Unidos e vindo viver mais tarde para a ilha onde teria raízes familiares. Tinha um sotaque nova-iorquino e era nesse registo que nos avisava para termos cuidado com as paredes da gruta. O bolor que as cobria fazia parte da fauna daquele espaço, éramos nós os intrusos. Subitamente, o aviso foi cortado por um urro que ecoou pelos túneis. O turista francês tropeçara e arrastara o braço pelo bolor para se amparar, apagando séculos de vida pelo caminho. O rasto do braço ficou marcado na parede da gruta, impressão digital contra o tempo, pintura rupestre fora de época. Nesse momento sorri. Voltei a sorrir quando poucos metros à frente o homem cedeu ao desiquilíbrio e tornou a arrastar-se pelas paredes, arrebatando consigo um pedaço da História daquele espaço.
 
Nessa altura, eu nunca tinha sido obrigado a olhar o mofo olhos nos olhos. Não sabia que há bolores que parecem ter uma camada de pêlo sobre si. Encontro-os sobretudo atrás dos móveis. Antes de desaparecerem, se não tivermos cuidado, lançam-se no ar como pólen. Há também bolores muito negros, com textura de tinta acrílica. Aparecem sobretudo na casa de banho e deixam uma marca ténue na tinta da parede quando desaparecem. No fundo, é como se nunca desaparecessem. Se os deixarmos sossegados durante demasiado tempo, ganham mais personalidade. A sua marca torna-se mais perene. Por isso, limpo. Por isso, esfrego com o tal vigor inaugural. Talvez por isso insista num joelho que continua a ranger. Faço um gesto para apagar, para erradicar, para tornar alvo o que nunca foi imaculado. E, pelo caminho, deixo uma outra marca. O turista francês sou eu.

Pintar um ano novo

Janeiro 02, 2023

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Durante a suspensão do semáforo vermelho, mais longa do que a contagem decrescente que nos pega ao colo até ao novo ano, imaginei que estas três pessoas se penduravam todos os anos por esta altura para voltar a pintar um arco-íris, combinando regressar trezentos e sessenta e cinco dias depois, mais coisa menos coisa, mais tradição do que resolução de ano novo, até o semáforo mudar de cor, verde por amadurar.

 

Resposta sem altura

Agosto 23, 2022

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(The Birthday Party, John Singer Sargent, 1887)

 

As crianças fazem muitas perguntas, mesmo para além da idade dos porquês, nesse horizonte imenso em que temos de lhes explicar não só a causa das coisas, mas o esqueleto das coisas, o frente e verso das coisas, a costura das coisas, as coisas que não são coisas, a ter de justificar os sins e os nãos, nem sempre o talvez. Todas as perguntas merecem resposta, ainda que por vezes nos apeteça deixar essa resposta pendurada e apenas acabemos por replicar alguma coisa, enfastiados. Complicado é, no entanto, quando as respostas não estão à altura das perguntas.
 
Há um par de meses, o teatro onde trabalho fez anos. Na manhã do dia de aniversário, a minha filha mais velha perguntou-me: "Vão construir coisas?". Devolvi-lhe outra pergunta, por que razão iríamos ocupar um dia de festa com obras? Esclareceu-me prontamente. Não seriam umas obras quaisquer. A Salomé queria saber se íamos construir mais um piso, em baixo ou em cima pouco interessava. Seriam as obras necessárias para o teatro crescer. Não é isso que acontece connosco à medida que somamos mais anos? E se os edifícios não crescem sozinhos, talvez tenhamos de ser nós a ajudá-los nessa tarefa. Não faz sentido - sob este ponto de vista, um arranha-céus seria o mais ancião dos edifícios e uma vivenda térrea um imóvel eternamente jovem -, mas é uma pergunta que escancara as portas da cabeça de quem a fez e que areja as nossas pelo caminho. Não encontrei resposta à altura, senão sorrir antes de saírmos de casa nessa manhã.
 
É uma pergunta curiosa, partindo dela. Afinal, a Salomé nem dá conta de que as suas pernas crescem de dia para dia. Não relaciona os trambolhões que dá com as nódoas negras que vão aparecendo nessas pernas esguias em obstinada expansão. No entanto, reconhece esse crescimento nos outros, até num edifício que tem pouco espaço para aumentar. A Salomé consegue espantar-se quando os sapatos deixam de lhe caber nos pés, quando aquele par de ténis, o preferido, começa a torcer-lhe os dedos. Não reconhece que é inevitável. Todavia a Salomé segue, a crescer sem dar por isso, rumo àquele instante em que, também sem nos apercebermos, o corpo decide parar de se esticar, e a partir do qual só nos resta desejar que as respostas estejam à altura da nossa altura e que consigamos evitar que o mundo nos pareça mais e mais pequeno. Nessa estação sempre-viva, as respostas passam a suscitar um medo maior e mais persistente do que as próprias perguntas.
 
"As pessoas são infinitas?", perguntou-me a Salomé há poucas semanas. Não queria saber se somos eternos, nada disso. Queria saber se estão sempre a irromper pessoas novas no mundo para compensar aquelas que nos deixam. Uma vez mais, não encontrei uma resposta certa. Todas se apequenaram, medrosas.
 

Escrevo.

Fevereiro 05, 2022

Captura de ecrã 2022-02-05, às 19.32.13 copy.p

(Office in a Small City, Edward Hopper)

 

Escrevo porque não quero falar. Comecei a escrever quando as letras ainda ocupavam um lugar estranho, quando ainda não sabia bem como as casar umas com as outras. Falo de letras, não de palavras. As palavras, as frases vieram depois.


Escrevo porque falar me cansa. Continuei a escrever, mesmo quando as frases, todas seguidas, umas atrás das outras, me pareciam mais barulhentas do que a minha própria fala.


Escrevo como se não conseguisse falar. Uma página num computador parece ainda mais branca porque podemos aumentar a luminosidade do ecrã. Escrevi nessas alturas porque preencher essa brancura era uma forma de me manter calado.


Escrevo porque quero falar cada vez mais baixo. Quando olho para um texto acabado de nascer, congratulo-me por saber que se eu quiser mais ninguém o lerá. Sei que o posso apagar, basta pressionar uma tecla durante o tempo necessário. Posso guardá-lo e ficar a ouvi-lo a ecoar numa pasta de computador.


Mas também escrevo porque, por vezes, gosto que esse eco consiga escapar.

 

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