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Longitudinal

Começar o ano de luvas na mão

Fevereiro 16, 2023

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Comecei o ano de pé ao alto, deitado ao comprido numa marquesa, para fintar um joelho débil. Comecei o ano a esfregar lixívia contra as paredes de casa com o vigor de quem inaugura um calendário, mas de luvas na mão para escapar aquela barrela translúcida. No segundo dia de 2023, que na verdade é o primeiro porque no dia que o antecede ainda ninguém acordou, ninguém quis despertar para a novidade, ainda que seja apenas um algarismo que muda de um minuto para o outro, um dia a mais, um ano a menos; dizia eu que no segundo dia do ano, que foi o mais luminoso até agora, embora isso não signifique grande coisa porque passou apenas um mês e meio; no segundo dia do ano, bolas, limpei mofo das paredes e iniciei um novo ciclo de fisioterapia.
 
É sempre a mesma canção. Enquanto as estações frias cobrem os céus de nuvens ora negras ora límpidas, salpicam o chão e as cabeças de gotas à procura de amparo e nos enganam nos dias ímpares com dias de uma claridade que já nem julgávamos possível, os tectos de minha casa e de tantas outras são tomados por um manto de nebuloso mofo. Adormeço, que é como quem diz, fecho as pálpebras por uns segundos-minutos-horas-dias, e quando as abro de novo os tectos outrora brancos tornaram-se uma tela salpicada de negro. A partir do meu travesseiro, vejo o mofo a formar um trilho do qual não distingo o fim do início, chegando a duvidar se haverá mesmo final ou se a invasão ainda nem começou.  Naquele canto do quarto, o mais longínquo de mim, assisto já sem pasmar à metamorfose lentíssima de um outro ser vivo.
 
O tecto da clínica de fisioterapia é branco, apenas maculado por quadrados com lâmpadas tubulares. Perna para cima, a ponta do pé bem esticada. Descubro-me demasiadas vezes especado, de olhar fixo nessas luzes no vaivém de exercícios. Joelho contra o peito, na direção da anca. As paredes da clínica de fisioterapia são também brancas. Em algumas delas semearam frases motivacionais, que a pouco e pouco se convertem em recriminações veladas: "é parte da cura o desejo de ser curado", "a sua atitude no início de um tratamento definirá em muito o êxito dele". Todos os dias, termino de joelho bem puxado junto ao peito, agarrado a uns elásticos que somam resistência ao movimento e põem a nu a desolação muscular. Todavia, e embora a rádio despeje sempre à mesma hora, qual recitação do terço, uma canção de um tipo espanhol sobre as suas férias em Portugal, insisto. "A cada dia um ai, a cada ai uma conquista." 
 
Lá em baixo, a luz era diminuta. Permitia, ainda assim, fitar os joelhos do senhor à nossa frente. Um turista francês, possivelmente sexagenário, talvez septuagenário, com um tronco enorme que, não fossem as pernas esguias, poderia denunciá-lo como um sempre-em-pé. Foi há alguns anos, numa viagem à ilha do Pico, quando dei por mim numa gruta com cerca de 1500 anos. Dei por mim é mero recurso expressivo. Na verdade foi uma visita guiada com dia e hora marcados. A Gruta das Torres é, garantia o folheto, o maior tubo lávico do país, e do caminho subterrâneo que a lava abriu de jorro, calcorreei apenas quatro centenas de metros. De algumas partes do tecto pendiam estalactites, diferentes das que conhecia das grutas calcárias do continente, pequenas gotas polidas. As estalactites das grutas calcárias são um testemunho da duração, têm a assinatura dos minerais que aguardaram com pacatez a sua vez de se eternizar em rocha. Aquelas eram testemunhas de um momento em que tudo queimava, como lágrimas de Pompeia. Pingos de lava que arrefeceram enquanto mergulhavam e ali ficaram como flagrantes fotográficos. Não vão crescer até ao solo. Mais à frente, numa zona mais profunda, lá estava ele. O bolor.
 
Perdi horas a procurar mistelas milagrosas para erradicar o mofo das paredes de casa. Nos supermercados há uma extensa gama de produtos que prometem fazê-lo. No YouTube, existem centenas de vídeos que procuram explicar em detalhe o que usar, e como o usar, para alcançar resultados inacreditáveis. Água com sal. Limão. Vinagre, mas do branco, nunca do balsâmico. Bicarbonato de sódio. Lixívia. Nenhum deles. Combinar todos sem qualquer ordem. Aplicar uma camada e deixar actuar. Atacar à primeira, sem perdão. Experimentei todos, misturei técnicas. Vi o bolor a desaparecer diante dos meus olhos irritados pela emanação das soluções corrosivas. Sob a acção da lixívia, o bolor torna-se amarelado e começa a ensaiar uma saída de ilusionista, borbulhando até ao próximo truque. 
 
Na gruta da ilha do Pico, o guia era um miúdo que devia ter nascido nos Estados Unidos e vindo viver mais tarde para a ilha onde teria raízes familiares. Tinha um sotaque nova-iorquino e era nesse registo que nos avisava para termos cuidado com as paredes da gruta. O bolor que as cobria fazia parte da fauna daquele espaço, éramos nós os intrusos. Subitamente, o aviso foi cortado por um urro que ecoou pelos túneis. O turista francês tropeçara e arrastara o braço pelo bolor para se amparar, apagando séculos de vida pelo caminho. O rasto do braço ficou marcado na parede da gruta, impressão digital contra o tempo, pintura rupestre fora de época. Nesse momento sorri. Voltei a sorrir quando poucos metros à frente o homem cedeu ao desiquilíbrio e tornou a arrastar-se pelas paredes, arrebatando consigo um pedaço da História daquele espaço.
 
Nessa altura, eu nunca tinha sido obrigado a olhar o mofo olhos nos olhos. Não sabia que há bolores que parecem ter uma camada de pêlo sobre si. Encontro-os sobretudo atrás dos móveis. Antes de desaparecerem, se não tivermos cuidado, lançam-se no ar como pólen. Há também bolores muito negros, com textura de tinta acrílica. Aparecem sobretudo na casa de banho e deixam uma marca ténue na tinta da parede quando desaparecem. No fundo, é como se nunca desaparecessem. Se os deixarmos sossegados durante demasiado tempo, ganham mais personalidade. A sua marca torna-se mais perene. Por isso, limpo. Por isso, esfrego com o tal vigor inaugural. Talvez por isso insista num joelho que continua a ranger. Faço um gesto para apagar, para erradicar, para tornar alvo o que nunca foi imaculado. E, pelo caminho, deixo uma outra marca. O turista francês sou eu.

Pintar um ano novo

Janeiro 02, 2023

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Durante a suspensão do semáforo vermelho, mais longa do que a contagem decrescente que nos pega ao colo até ao novo ano, imaginei que estas três pessoas se penduravam todos os anos por esta altura para voltar a pintar um arco-íris, combinando regressar trezentos e sessenta e cinco dias depois, mais coisa menos coisa, mais tradição do que resolução de ano novo, até o semáforo mudar de cor, verde por amadurar.

 

Vamos lá ver se consigo explicar isto bem

Outubro 11, 2021

Claude_Monet_-_The_Houses_of_Parliament,_Sunset.jp

(The Houses of Parliament, Sunset, Claude Monet) 

Vamos lá ver se consigo explicar isto bem. Das traseiras da minha casa vejo prédios. De vez em quando, umas pessoas à janela, mas sobretudo prédios. Se abrir a janela da cozinha de par em par, vejo à minha esquerda a empena de um prédio que avança uns bons cinco metros para além do meu. É uma parede robusta, que reconhece a sua idade, na qual gostaria de ver desenhada alguma coisa. Se olhar em frente vejo duas filas de telhados, com telhas mais ou menos alaranjadas, mais ou menos enegrecidas, de acordo com a altura em que foram colocadas. Mais a frente, vejo três prédios mais altos, que cortam o horizonte. São eles próprios a linha do horizonte. Um é cor de rosa, o maior. Os outros dois já devem ter sido amarelos há muitos anos. Há outros prédios em frente depois desse mar triangular de telhados. Mas aquilo que me prende o olhar é o topo de um prédio mais alto, a uns bons 300 metros de distância. Dele apenas vejo uma especie de chaminé. Umas telhas pequenas, porque distantes. E ventiladores, daqueles simulacros de bola de espelhos que tornam telhados numa pista de dança vazia enquanto há Sol. No Verão, pelas 20h30, todos os prédios ao redor da minha casa descobrem-se pequenos de mais para se esticarem rumo à luz apaziguadora do final da tarde. Mas o topo desse outro prédio permanece ainda dourado durante uns minutos. Fico a olhá-lo, minuto a minuto, detido nesse eclipse vagaroso até os ventiladores perderem o seu cintilar. Faz-se noite no meu bairro.

 

Para que lado se estica a corda agora?

Agosto 31, 2021

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Quando nascemos, os nossos avós já são velhos. A sua longevidade é como um seguro de vida, um mistério reconfortante para quem ainda está a aprender a distinguir o dia de ontem do dia que está para chegar. À medida que crescemos, percebemos que afinal não eram assim tão velhos quanto julgávamos. Vão desafiando o tempo, esticando pequenos fios de cabelo até ficarem completamente brancos. Ficam cada vez mais velhos para que descubramos que eles já foram cada vez mais novos. Esticam a corda e equilibram-se sobre ela, dilatando um horizonte que julgávamos finito. Quem diria que os avós seriam os mais geniais funambulistas...
 
A minha avó materna viveu mais de nove décadas. Nasceu em 1929, renasceu umas quantas vezes ao longo da vida. Sobretudo quando foi obrigada a isso: viúva com duas filhas pequenas, a começar no primeiro trabalho da sua vida aos trinta e poucos anos. Trabalhou até aos 76 anos e depois disso teve de renascer para não se pasmar com a vida. Puxou a corda durante anos, puxou-a bem longe. Começou cedo, quando era miúda. No caminho de casa para a escola, e no regresso, combinava com a empregada que a deixasse andar uns metros à frente dela, para escapar por instantes ao apertado controlo parental. Duas vezes por dia, sentia-se mais livre. Os avós esticam a corda desde cedo, mesmo antes de saberem que um dia vão ser avós.
 
Vivi com ela durante sete anos. Nos primeiros tempos, pude testemunhar o frenesim das manhãs. Acordava frequentemente com a voz dela a gritar impropérios contra um tacho que teimava em esconder-se no armário. Encaixava uma rotina abundante nas poucas horas que tinha antes de seguir para o trabalho mesmo que tivesse de devorar o almoço em três garfadas para o conseguir. Quando eu me levantava, já ela estava a dilatar o tempo. Por isso, havia sempre uns minutos para parar na marquise, de rostos banhados pelo sol matinal. De vez em quando, dançávamos com a telefonia aos berros. "Lembras-te quem te ensinou a dancar?", perguntava-me. Foi ela. Há quase dez anos, no jantar do dia do 83.º aniversário, disse-nos que aquele tinha sido um dos dias mais felizes da vida dela. Era uma sexta-feira, o final de uma semana repleta de eventos na Academia Sénior da Junta de Freguesia, que culminou num baile com música popular. "Até senti uma alegria dentro de mim", confessou. Conseguem sentir quão longe pode a corda esticar?
 
Quando nasci, conheci duas avós. Nem o meu avô materno, nem o paterno conseguiram esticar a corda o tempo suficiente para que os conhecesse. A minha avó paterna morreu aos setenta e seis anos, quando eu tinha dez. A minha avó materna morreu ontem aos noventa e dois anos, pouco dias antes de eu chegar aos 35. Não tenho avôs nem avós. Para que lado se estica a corda agora? A ordem natural das coisas deixa-nos desequilibrados.

 

Monsanto, seis e meia da manhã

Julho 28, 2021

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Aguardava o nascer do Sol. No entanto os pássaros chilreavam há muito e da cidade já se ouviam os seus ruídos habituais, aqueles que nos garantem que ela já acordou - ou melhor, que nunca chegou a adormecer. O comboio a forçar os carris na sua jornada, os motores dos carros aqui e ali. Um silvo metálico cuja origem ficou por identificar. Um avião que cortou a paisagem, precisamente no local para onde os olhos, expectantes, apontavam na esperança de ver uma nesga do nascer do Sol.

Ele aguardava o nascer do Sol. No entanto, os pássaros continuavam a embalá-lo numa espécie de canto que pressagiava qualquer coisa de inicial. Se por aqui galos houvesse, eles ja teriam cantado. É uma afirmação, nao é uma interrogação. No entanto as plantas, as árvores - as pedras também - pareciam dormir ainda. Talvez fossem como a cidade, que nunca dorme. Ou melhor, que dorme quando adormecemos, e partilha connosco noites de insónia, tal como os melhores animais de estimação o fazem.

Naquela manhã de Julho... Já seria manhã? Ou ainda era madrugada? Agora são mesmo interrogações. Naquela manhã nebulosa de Julho, ele aguardava o nascer do Sol. No entanto, a luz já era total. Talvez o Sol tivesse nascido nas suas costas, enquanto tudo o resto acordava.

 

(escrito no Miradouro do Moinho das Três Cruzes, na floresta de Monsanto, durante o encontro Caminhar e Escrever - Ao Nascer do Sol, organizado pela Escrever Escrever)

 

Os bolsos e as possibilidades falhadas

Agosto 03, 2017

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Em minha casa, quando não sei onde pára um objecto qualquer, há uma expressão costumeira atirada na minha direcção: "procura nos bolsos". Neste caso, nos bolsos dos meus casacos e das minhas calças. É uma piada mas daquelas que se cobrem desavergonhadamente de verdade. Já encontrámos chaves perdidas há vários dias, documentos dados como desaparecidos durante semanas - aquilo que conseguirem imaginar. Não poucas vezes tem o seu quê de surpreendente. E não falo de voltar a encontrar uma nota de cinco euros que recebi como troco num café. Falo de achar possibilidades.

 

Nas últimas semanas voltei a usar um casaco que já não saía do cabide há alguns meses. Enfiei as mãos nos bolsos, começando a esvaziá-los, e encontrei potenciais peças de um potencial museu. O museu dos planos que não cumprimos.

 

Num dos bolsos encontrei um folheto com a programação de uma série de transmissões de peças de Shakespeare num cinema de Lisboa. Em directo, a partir de Londres. Nessa altura, há muitos meses, o bardo inglês faria quatrocentos anos - se se tivesse mantido mais vivo do que aquilo que está. Este ano já faria quatrocentos e um e ninguém festeja esse tipo de aniversários. Reparei que tinha sublinhado duas sessões, em dias e horários que, naquele momento, pareciam possíveis de cumprir. Os planos falharam. Nem me lembro exactamente que outros planos se intrometeram na sua concretização. Reconheço apenas neste folheto o rosto amarrotado de uma possibilidade.

 

*

 

Segunda-feira, onze da noite. Um homem aproxima-se do microfone no palco do bar Templários, em Lisboa. Veste uma t-shirt escura onde se lê "out of place" mas a atitude desmente esse statement. Está obviamente no seu elemento mesmo que a última vez que tenha actuado diante de uma plateia tenha sido há quarenta e dois anos. Tinha dezoito anos.

 

Nessa época tocava, cantava, compunha. Entretanto casou, teve uma filha, teve outra, teve empregos, teve netos, teve abalos sísmicos dos bons e dos maus. O pai da Sara chegou aos sessenta há pouco mais de três semanas. Continua a tocar, a cantar e a compôr. Orgulha-se da sua música, exibe esse orgulho como um acto de resistência. Mesmo no interior da própria família, é difícil encontrar validação quando a vida já deu tantas voltas que acabou por reduzir uma fatia importante da nossa identidade a um mero acessório. Mas o Rui, o pai da Sara, persiste. Mesmo que tenha de ouvir a sua música com auscultadores, para evitar que o resto da família lhe peça para baixar o volume.

 

Quantos planos por cumprir se podem encaixar num período de tempo tão longo? É impossível não conjecturar hipóteses, possibilidades. Como seria se o concerto seguinte não tivesse demorado tanto tempo a acontecer? Se o Rui tivesse tido tempo e oportunidades suficientes para se aborrecer de dar concertos. Há vidas mais curtas do que as décadas que se demoraram entre estes dois momentos de exposição pública. Quantas dessas vidas se manifestam diante de nós enquanto escutamos, música a música, alguém a rebelar-se contra as expectativas?

 

Talvez seja isto aquilo que se sente quando nos cumprimos, quando damos a volta às possibilidades falhadas.

 

 *

 

De cara colada ao vidro, Lisboa ia passando pela ponta do nariz de dois miúdos espanhóis, com quem partilhei o setecentos e vinte e oito. "Olha, um castelo mágico", apontou para o alto. Não era um castelo, era o Panteão a recolher-se atrás dos telhados. "Olha, as matrículas dos carros são códigos secretos." Eram matrículas completamente normais, mesmo de acordo o padrão espanhol. "Olha, o rio está a fazer ondas." Estava, mas era apenas a esteira de um navio. "Olha, estão dois monstros escondidos atrás daquele prédio." E se estivessem mesmo?

 

(lá em cima, uma still do Era uma vez na América, do Sergio Leone) 

Estado Actual #41

Setembro 13, 2016

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Tenho um dispositivo da Via Verde por activar no carro. Sempre me pareceu uma coisa de adulto (tanto quanto ter um filho, mas entretanto também passei a ser pai). Está ainda por activar e por colar no vidro. É o último acto de resistência dos meus vinte anos. Esse e o herpes que me apareceu no lábio esta semana. Esta crosta continua a parecer-me coisa de adolescente, de quem andou a beijar quem não devia. E nem vou alongar-me sobre a t-shirt do Donald. Por enquanto o aparelho da Via Verde vai continuar no porta-luvas. Mantenho o pronto-pagamento e os trinta não me encontram.

 

Não confio num Outono...

Setembro 28, 2015

Não confio num Outono que aparece às nove da manhã de um dia útil. Ainda por cima com uma precisão em desuso; ninguém agenda o seu regresso, quase um ano depois de ter partido, para as nove e vinte da manhã. Sobretudo, ninguém decide anunciar o reinício do arrefecimento geral numa gloriosa manhã de sol - a não ser que reconheçamos no gesto a assinatura de um sádico. Não confio em Outonos, posso generalizar. Como não acredito em paliativos. Nem em simulacros. Só nos resta rejeitar uma estação que sobrevive em exclusiva dependência da sua sucessora. E nem a melancólica encenação do ritual das folhas caducas a resgata dessa vagueza. Porque nunca conheci Outono feliz. Não me recordo de alguém ter combinado estes dois conceitos, mais do que palavras, numa frase. A não ser eu, há uma linha, precisamente para negar a sua união. Mas não me permito generalizações. Uma certeza: não o vivi. Nunca soube encontrar consolo nessa branda passagem de testemunho que a meia-estação ilude.

 

À janela da cozinha tenho um galo meteorológico. Todas as manhãs confirmo a minha suspeita. Desde que o Outono começou, a superfície aveludada do galo nunca deixou de ser azul. (O azul significa que estará sol, o cor-de-rosa chuva; a exactidão só não é assustadora porque se trata de um galo de plástico que prediz o estado do tempo e estamos na dimensão das coisas irreais mas definitivamente possíveis.) Antes de saciar a fome, mastigo em silêncio mais um falhanço do Outono. Que venha a chuva e a estação verdadeira. As folhas já caíram há muito.

 

Estado actual #38

Novembro 17, 2014

Na minha rua as janelas já não estão abertas à noite, quando passeio com a minha cadela.

Se bem me lembro, há umas semanas ainda conseguia espreitar as casas dos rés de chão - intrometer-me de soslaio no equilíbrio da sua vida quotidiana.

Mas isto foi antes de o Verão dar lugar ao Outono. Antes de as noites passarem a ser mais ventiladas.

Foi até antes de, depois de dez anos de viagem, uma sonda ter pousado num cometa, ter feito o seu trabalho e ter caído inanimada com a sensação de dever cumprido.

 

 

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