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Longitudinal

Havia, há um dia

Setembro 24, 2024

Havia, há um dia, quem chinelasse pela carruagem do comboio, os pequeníssimos grãos de areia em debandada perna abaixo até ao piso azul salpicado de estrelas brancas de microplástico, como aquele outro lençol em constante emoção que vem ao nosso encontro junto ao areal, há bem pouco tempo havia quem transportasse até à barriga da perna o que sobrava de uma jornada plena de ócio, atirada à cara de quem passou pelas férias sem pisar um areal, nem sequer um peixe-aranha mais atrevido, e nem sentiu falta desse mergulho a seco no Verão, nem do mergulho a sério na àgua com sal e plásticos, macro ou micro, ainda há um mês havia pouco espaço na carruagem para entrar, era preciso furar pelo meio dos corpos adolescentes, colados entre si como se o sal os prendesse uns aos outros após um dia inteiro na praia, talvez apenas uma tarde, já que nesta idade basta uma tarde para gastar quase uma vida inteira, até há uma hora, parece-me agora, ainda os via adormecidos nos bancos do comboio, amontoados como despojos de uma batalha, mas das felizes, com os seus penteados todos iguais, as suas roupas idênticas, a dormir com um escaldão bem vivido, ou ainda a pingar, de pé, uma poça a crescer no meio da carruagem, a praia possível de Belém ao Cais Sodré, o Verão praticável, havia qualquer coisa de Outono nesse Verão, talvez a culpa seja do ar condicionado.

 

 
 

Nao há despensas arrumadas

Setembro 29, 2023

Desarrumo o passado como sei. De um jeito manso.
 
Entro num edifício depois de ter atravessado aquela porta pela primeira vez há vinte e quatro anos. Quando regressamos aos locais do nosso passado, encontramos muitas vezes um mundo de impressões reconhecíveis, porém em bizarra miniatura. Desta vez não. Reconheço o espaço e os corredores são mais familiares do que exíguos. Encontro locais que mudaram, não me surpreendo. Todos mudamos em vinte e quatro anos, até este maciço e ordenado monte de pedras, cimento, tinta, telhas, longas tábuas de madeira corrida. Ali ao lado, ainda junto à entrada, havia uma despensa que guardava mantimentos para atividades no exterior. De ali de dentro roubávamos bolachas, reservadas para a duração integral daquela colónia de férias. 
 
Entro com trinta e seis anos, como entrei com doze: no Verão, de calções. Regresso maior, com a minha família, que inclui duas crianças irrequietas. Elas vão enchendo os corrredores daquele ruído inconfundível a que chamamos ora de insubordinação, ora de inconsciência, ora de infância. Reconheço os corredores daquela enorme casa apenas quando elas os entopem de barulho e sinto-me a sobrevoar esse ano, quase longínquo, em que aqui cheguei com doze, quase treze, num bando de adolescentes e pré-adolescentes, tal como eu. E agora peço às minhas filhas para falarem mais baixo - nestes quartos estão agora adultos, não miúdos em ebulição. 
 

Cadeiras de madeira dispostas em círculo por baixo de uma grande árvore

Aquele era o Verão de todas as promessas. Um primeiro Verão longe da família. Quinze dias, mais coisa, menos coisa. Agora, deitado numa espreguiçadeira junto à piscina, estou a ler a autobiografia do Bruce Springsteen. A dado momento, quando discorre sobre a sua infância e juventude, o músico inicia um capítulo assim: "no princípio, a Terra estava coberta por uma enorme escuridão. Havia o Natal e o dia de anos, mas, para lá disso, havia um vazio infinito e autoritário. (...) Não havia futuro, nem história. Não havia nada com que um miúdo pudesse preencher as férias de verão." Até que se deu um terremoto, em sentido figurado, mas com efeitos replicantes: "A pequena parte do mundo onde habito acabou de tropeçar num momento irreversível." Poderia ser esse tal momento, despontado há mais de vinte anos, em que nos afastámos da família para viver dias de duração indefinível, sabendo que não voltaríamos a casa ao final do dia, mas apenas ao fim de duas semanas, um horizonte que parecia a cada dia mais longínquo, enquanto pensávamos pela primeira vez naquilo que poderíamos ser fora do núcleo onde havíamos crescido, no quanto poderíamos mudar, nas voltas que daríamos até regressar ao ponto de partida ou mesmo na hipótese de não voltar de vez porque entretanto tínhamos descoberto que podíamos ser mais do que uma pessoa, tudo isto enquanto tirávamos bolachas da despensa. A vida estava a começar, conseguíamos senti-la. Para o Bruce, esse "momento irreversível" foi, nada mais, nada menos, do que a revolucionária aparição do Elvis Presley nos ecrãs de televisão norte-americanos. Para mim, umas férias junto de pares. Um sismo.
 
Entro neste edifício, que agora chamam Casa e que já foi Preventório. Quem terá sido isolado aqui? No meu tempo, ou melhor, nessa outra época em que eu julgava dominar o tempo, acreditávamos todos na sobrevivência das amizades. Escrevemos cartas, já que nenhum tinha telemóvel. Escrevemos cartas. Escrevemos mais cartas. Até deixarmos de as escrever porque a amizade não sobreviveu ao papel.
 
Regresso à espreguiçadeira, mesmo ao lado da piscina, onde descubro a infância do Bruce Springsteen. Há quanto tempo deixei de mergulhar nas férias? Há quanto tempo as férias deixaram de ser um mar de dias? Em dois mil e vinte e três, vigio duas crianças que saltam para aquela piscina com a mesma energia com que o fiz há quase vinte e cinco anos. As minhas filhas saltam com a liberdade com que outros o fizeram antes e depois de mim. É comovente descobrir que as linhas temporais se cruzam, se cosem umas às outras. Estamos todos ali, mais uma vez. A algumas dezenas de metros, vejo cadeiras distribuídas em círculo junto a uma árvore que, pelo tamanho, já devia lá estar quando a minha versão pré-adolescente ali passou. Não me lembro de ávores, lembro-me de pessoas. Lembro-me de pessoas, mas não me lembro de nomes. Chorámos muito na despedida. Erguemos um mundo em duas semanas e assistimos comovidos ao seu desabamento. Provavelmente não foi nada disto. Invento um caminho de passadas mais pequenas do que as que consigo agora dar para ver se encontro as minhas pegadas da altura.
 
Desarrumo o passado do único modo que o tempo me ensinou a fazer, mansamente. Ali ao lado da entrada, naquele recanto mais escuro, mesmo ao lado da escadaria, pouco antes de chegar ao refeitório, havia uma despensa. A tal despensa onde os monitores guardavam os mantimentos para a ceia e para as visitas de campo. Entro na despensa para tirar umas bolachas. Afinal é uma casa de banho. Terá sido sempre assim?  O passado nunca é uma despensa arrumada. 
 
Entro numa porta. Entro noutra porta. Saio em direção ao jardim, onde vejo duas mulheres, responsáveis pela limpeza do espaço, a carregarem enormes trouxas de roupa. Partem de uma ponta do jardim, atravessam os corredores e terminam o trajeto na porta da rua. Lençóis de baixo, lençóis de cima, fronhas, toalhas, tecido embrulhado sem rigor.
 

Vários sacos de roupa, alguns de pano outros de plástico preto, amontoados junto a uma porta de vidro. 

Na primeira noite que ali dormimos, que foi a última noite da colónia de férias deste ano, ouvimos música no pátio das traseiras e espreitámos pela janela. Uns quantos miúdos dançavam coreografias que pareciam saber de cor, outros sentados a um canto falavam entre si ou com os telemóveis. O mundo não parou desde a altura em que eu fui um daqueles miúdos, salvaguardadas as devidas distâncias. Permanece sempre alguma coisa subtil, impalpável. Julgo. Ou julguei. Dois dias depois dessa noite, as duas mulheres continuam a carregar as trouxas de roupa até à entrada da casa. São fardos pesados, não passam despercebidos. São, ao mesmo tempo, as únicas provas de que até há dois dias ali estiveram trinta miúdos - como eu naquele Verão de mil novecentos e noventa e nove -, a apostarem futuros naqueles dias estivais como fichas de casino. Sem se darem conta nem da sorte, nem do risco. No jardim encontro outros vestígios. Numa grande caixa de plástico, um chinelo, um pacote de lenços, um baralho de cartas e várias meias sem par deixadas para trás.
 
Não me lembro se no meu Verão de noventa e nove me esqueci de alguma coisa naquela casa, onde agora entro. Na porta vão-se acumulando as trouxas de roupa suja. Em breve, alguém as virá buscar. Serão lavadas a altas temperaturas, secarão ao vento e, quando aí estiverem, alvas como o começo do dia, a brisa fará com que a roupa ondule e confesse em sussurros estas e outras histórias de séculos que as suas fibras conservam.
 
 

Vamos lá ver se consigo explicar isto bem

Outubro 11, 2021

Claude_Monet_-_The_Houses_of_Parliament,_Sunset.jp

(The Houses of Parliament, Sunset, Claude Monet) 

Vamos lá ver se consigo explicar isto bem. Das traseiras da minha casa vejo prédios. De vez em quando, umas pessoas à janela, mas sobretudo prédios. Se abrir a janela da cozinha de par em par, vejo à minha esquerda a empena de um prédio que avança uns bons cinco metros para além do meu. É uma parede robusta, que reconhece a sua idade, na qual gostaria de ver desenhada alguma coisa. Se olhar em frente vejo duas filas de telhados, com telhas mais ou menos alaranjadas, mais ou menos enegrecidas, de acordo com a altura em que foram colocadas. Mais a frente, vejo três prédios mais altos, que cortam o horizonte. São eles próprios a linha do horizonte. Um é cor de rosa, o maior. Os outros dois já devem ter sido amarelos há muitos anos. Há outros prédios em frente depois desse mar triangular de telhados. Mas aquilo que me prende o olhar é o topo de um prédio mais alto, a uns bons 300 metros de distância. Dele apenas vejo uma especie de chaminé. Umas telhas pequenas, porque distantes. E ventiladores, daqueles simulacros de bola de espelhos que tornam telhados numa pista de dança vazia enquanto há Sol. No Verão, pelas 20h30, todos os prédios ao redor da minha casa descobrem-se pequenos de mais para se esticarem rumo à luz apaziguadora do final da tarde. Mas o topo desse outro prédio permanece ainda dourado durante uns minutos. Fico a olhá-lo, minuto a minuto, detido nesse eclipse vagaroso até os ventiladores perderem o seu cintilar. Faz-se noite no meu bairro.

 

Que já só penso no Verão do próximo ano

Julho 01, 2016

IMG_3767.JPG

 

Que hoje esteve calor, que já é Verão, que não devias andar com a cabeça a descoberto, que afinal ainda não está tempo de ir à praia, que o que me apetecia agora era mesmo um mergulho, que a água do mar está muito fria, que as ondas estão muito fortes, que hoje não há ondas e isto mais parece uma piscina de crianças, que a praia está a abarrotar, que está muito vento, que tenho areia em todos os refegos do corpo, que afinal o tempo já está mesmo de praia, que se aqueles miúdos me voltam a acertar com a bola nem sabem o que lhes acontece, que o trânsito para a praia estava infernal, que hoje a praia estava impossível, que não consigo acreditar que ainda há quem traga tachos e panelas para a praia, que tenho fome e só trouxe uma sandes de queijo e um iogurte, que dava o meu reino por um gelado no final de um dia na praia, que acho que já estou a ficar bronzeado, que os dias estão mesmo mais longos, que as saídas à noite estão cada vez mais longas, que tenho o livro cheio de grãos de areia, que os dias começam a parecer mais curtos outra vez, que ontem já tive de carregar a geleira e o chapéu de sol portanto hoje é a tua vez, que me sabe bem regressar a casa com a pele encascada do sal e da areia e ter de baixar a pala no carro para não ficar encandeado, que devo ter perdido os óculos de sol algures, que os dias estão mesmo a ficar mais curtos, que ontem não estava quase ninguém na praia, que hoje já fazia falta um tapa-vento, que afinal os óculos de sol estavam no porta-bagagens, que ninguém merece andar estes quilómetros todos e estar bandeira vermelha, que hoje nem vou espalhar protector solar, que não vou andar quilómetros e quilómetros de carro para chegar lá e o tempo estar péssimo, que os dias estão mais curtos, que hoje já esteve mais frio, que já só penso no Verão do próximo ano.

 

IMG_3777.JPG

 

Estado actual #38

Novembro 17, 2014

Na minha rua as janelas já não estão abertas à noite, quando passeio com a minha cadela.

Se bem me lembro, há umas semanas ainda conseguia espreitar as casas dos rés de chão - intrometer-me de soslaio no equilíbrio da sua vida quotidiana.

Mas isto foi antes de o Verão dar lugar ao Outono. Antes de as noites passarem a ser mais ventiladas.

Foi até antes de, depois de dez anos de viagem, uma sonda ter pousado num cometa, ter feito o seu trabalho e ter caído inanimada com a sensação de dever cumprido.

 

 

Estado Actual #33

Setembro 06, 2012

 

 

 

Perdemos o vento a silvar entre tapa-ventos, guarda-sóis estandardizados, selvas de pano colorido enterrados pela areia… E a praia tornou-se um cemitério no qual nos enterramos voluntariamente. De modo lento, conscientes da distância que a maioria procura cumprir, começam a arrastar-se à minha volta. Vejo dezenas de famílias a chegar. Chegam tão tristes e vagarosas, aborrecidas desde o primeiro minuto. Aburguesando-se aos poucos num piquenique frugal de iogurtes diet, sanduíches leves e bocejos. Nem uma talhada de melão, nem um só damasco, nem "pão-de-ló molhado em malvasia".

 

Abandonámos os elementos naturais. O mar é apenas paisagem que se subjuga, com a excepção de algumas vagas cuja obstinação não esconde, ainda assim, o seu propósito cenográfico. Rebolamos nas ondas com a mesma vontade com que nos dirigimos todos os dias, à mesma hora, em direcção ao emprego. E mergulhamos, depois de uma entrada medrosa, sem o fulgor que a água fria de outros tempos nos exigiu durante anos. O tédio apoderou-se do estio, e em cada par de seios procuramos, sem nunca desfrutar, "o ramalhete rubro das papoulas". O Verão acabou. Não apenas por agora e durante três estações.

 

O Verão acabou.

 

 

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